Título: Questão de fé
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 11/05/2007, Economia, p. 28

É obscurantista a reação contra o ministro da Saúde. Ele é autoridade de um governo laico e tem o dever de falar de um problema que provoca prejuízo em vidas humanas e afeta o sistema de saúde. É também obscurantista o veto às pesquisas de células embrionárias por razões religiosas. A separação entre Estado e Igreja, consumada há séculos, libertou os governos do poder político do Vaticano.

O aborto é tema delicado e doloroso. É natural que as pessoas sintam o conflito entre sentimento e razão ao analisá-lo. Os números que falam à razão mostram milhares de casos de mulheres internadas para curetagem correndo risco por terem se submetido a procedimentos rudimentares. São as mulheres pobres as que passam por esse risco. As filhas de outras classes estão protegidas pela assepsia e pelo silêncio das clínicas particulares. Mesmo assim, é decisão dolorosa para cada mulher.

Seria estranho se o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, decidisse não tocar no tema por razões de fé. Isso no século XXI. Uma fúria se abateu sobre ele desde que teve a coragem de tocar no tabu. Temporão não está impondo uma decisão ao país, não está propondo uma medida provisória com efeito imediato, apenas sugeriu o debate e jogou luz sobre estatísticas provando que o problema existe e que ele, como ministro da Saúde, não pode ignorá-lo.

O Papa vindo ao Brasil no meio do fogo dessa discussão falou em excomunhão de políticos. Os repórteres perguntaram ao ministro se ele temia essa pena, e Temporão respondeu: "A fé não se excomunga." A fé pertence a cada um, é pessoal, intransferível, e não está sob o controle do clero decidir quem tem e quem não tem.

A cúpula da Igreja Católica tem um enorme telhado de vidro. Das vezes em que perseguiu cientistas que a contrariavam ao sustentar constatações feitas pela ciência. Por considerar hereges os que divergiam não da doutrina, mas das decisões dos governantes ocasionais da Igreja. Melhor nem falar das fogueiras medievais. Hoje especificamente está imersa num dilema interno com os trágicos casos de pedofilia.

A cúpula da Igreja pode expulsar do seu convívio os padres que ferem suas regras e cânones. Sobre eles, ela tem governo. Mas não pode determinar quem tem ou não fé. A Igreja, como comunidade de fiéis, não pertence ao Papa, aos bispos e padres. Eles a lideram, mas não são seus donos. A excomunhão existe no direito canônico, mas tem efeito restrito. Determina quem freqüenta o espaço físico das igrejas, mas não o intangível contorno da Igreja no sentido bíblico, que é a comunidade dos que crêem.

Mais obscurantista é tentar vetar as pesquisas com células-tronco embrionárias. A ciência sempre avançou e a fé se manteve. São questões independentes, de dois mundos diferentes. As pesquisas com células-tronco permitirão que se salvem vidas e se curem enfermos. Tem tanto a ver com a fé quanto os avanços científicos que provaram não ser a Terra o centro do universo.

O Brasil aprovou a lei permitindo as pesquisas com votos de 96% dos senadores e 85% dos deputados. O presidente a sancionou. Mas ela está parada no STF pela ação de inconstitucionalidade proposta pelo procurador Cláudio Fonteles. No debate do tema, Fonteles atacou a cientista Mayana Zatz, líder da defesa da pesquisa, de ter um "viés judaico". Argumento inaceitável.

Mayana é conhecida por sua competência, por 30 anos de dedicação à ciência e pelo empenho sereno no debate público sobre a controvérsia em torno dos estudos com embriões. Geneticista de renome mundial, trabalha com pesquisas com células-tronco adultas e é diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano. Na audiência pública que o STF realizou, foi a porta-voz da Academia Brasileira de Ciências. A lei brasileira permite a pesquisa apenas de embriões inviáveis para a reprodução, que estejam há mais de três anos congelados e com a autorização das pessoas das quais se originam. As pesquisas podem abrir um vasto campo de cura para doenças como mal de Parkinson, diabetes, doenças neuromusculares e secção da medula. Que os ministros do Supremo tenham em mente, ao votar, que o Brasil é um Estado laico.

É natural que líderes religiosos defendam princípios da vida privada que acreditam certos. São conselhos, não imposições. As brasileiras souberam bem fazer essa diferença quando decidiram reduzir o número de filhos usando métodos contraceptivos que eram condenados. Se mais de 70% dos brasileiros são católicos como dizem as estatísticas, e a natalidade caiu brutalmente nas últimas décadas, é porque as mulheres católicas participaram do mesmo movimento que generalizou o uso dos métodos contraceptivos.

O melhor método para evitar o aborto não é a ameaça ou a proibição do tema, mas, sim, tornar mais acessíveis a todas as mulheres, preferencialmente às muito jovens e muito pobres, todos os métodos contraceptivos disponíveis. A gravidez precoce no Brasil é uma chaga social. Meninas que ainda não se formaram interrompem estudos e projetos para mal cuidar dos filhos nascidos precocemente. As tragédias sociais se reproduzem. Isso prova a falha do sistema de saúde brasileiro em orientar e disponibilizar todas as formas de se evitar a gravidez. O modo mais eficaz de se reduzir o número de abortos é evitar a concepção. Nisso o Ministério da Saúde tem muito a fazer.