Título: Choque na Saúde
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 13/05/2007, O Globo, p. 2

Não faz dois meses que ele tomou posse e já comprou briga até com o Papa. Já sugeriu a discussão do aborto, criticou a propaganda de cervejas e o varejão das farmácias, quebrou a patente de um medicamento e prometeu revolucionar a gestão dos hospitais públicos. A mudança legislativa para isso já está no Gabinete Civil. Para ter José Gomes Temporão no Ministério da Saúde, o presidente Lula bateu pé, atrasou a escolha e enfrentou a pressão do PMDB. Mas, só quando surgirem os resultados, saberá se estava certo.

Temporão nega o gosto pela briga ou pela polêmica. "Estou apenas tropeçando em realidades que exigem a busca de soluções e a minha manifestação. Eu apenas cumpro a obrigação de um administrador público", diz ele, declarando-se animado e pronto para as batalhas, antes de embarcar, anteontem, para Genebra, onde participa da Assembléia Mundial de Saúde. No ministério, funcionários antigos dizem que ali não se trabalha tanto desde a gestão de José Serra.

As brigas até agora compradas vêm lhe rendendo aplausos, mas é esta última ameaça, a de mudar tudo na gestão dos hospitais, que pode fazer diferença para a população. Os sem-plano de saúde comem o pão de Asmodeu em hospitais que têm a virtude da porta única, a universalidade, mas oferecem o inferno das filas, do mau atendimento, da falta de equipamentos e até da falta de remédios nos prontos-socorros. Em Brasília, periodicamente, os dois maiores hospitais públicos ficam até sem o reagente para o hemograma completo, exame básico para qualquer diagnóstico. No Rio, é aquilo que escandalizou o governador Sérgio Cabral nas visitas que fez depois de empossado. É assim Brasil afora, embora exista uma ilha de excelência aqui, outra ali. Isso mostra que o sistema poderia funcionar bem, se fosse bem gerido. O Orçamento da Saúde é de R$40 bilhões para este ano. Tem crescido ano a ano - depois de aprovada a Emenda 29, que garante recursos corrigidos e acrescidos da variação do PIB -, mas nada melhora.

O choque de gestão hospitalar que Temporão propõe passa por três reformas básicas: a profissionalização dos gestores, o estabelecimento de contratos de gestão e a mudança do regime trabalhista dos profissionais da saúde, que passariam a ser regidos pela CLT. Para isso, será preciso alterar a Lei 8.448, de 1992, que regulamenta o artigo 37 da Constituição. Ele já enviou a proposta ao Gabinete Civil, para ser encaminhada ao Congresso.

Os hospitais, individualmente ou em redes (os federais do Rio ou os do município, por exemplo), constituirão fundações estatais de direito privado e, nesta condição, terão maior liberdade para nomear os gestores, buscando os mais capazes, livres de influência política e de travas burocráticas. Estas fundações firmarão contratos de gestão com o ministério, fixando orçamento, metas de atendimento e de melhora na qualidade. Isso se parece um pouco com o regime da Rede Sarah, que lhe tem garantido o padrão de excelência. Temporão diz que não, por ser a Rede Sarah mantida por uma fundação privada. Mas aqui não importa a cor do gato, contando que cace os ratos: ofereça, gratuitamente, bons serviços à população.

A passagem dos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúdes para a CLT tem grande razão de ser. Como servidores estatutários, eles têm estabilidade, e isso os protege das faltas, da ineficiência, daquela indolência, quando não grosseria, até no ato de preencher a ficha do paciente. Temporão admite que a dedicação exclusiva poderá ser exigida dos médicos, embora para isso seja necessário garantir salários de mercado. No Sarah, este é um mandamento, diz o fundador, dr. Campos da Paz. O ministro admite que os salários chegam a ser aviltantes na rede pública. No regime celetista, poderia haver diferenciação segundo a qualificação. Dá o exemplo do Hospital de Bonsucesso, onde são feitos transplantes de fígado. Um transplante pode exigir da equipe um plantão de 48 horas. E, no entanto, o médico responsável pode ganhar apenas R$1.200 mensais. Um sistema destes não pode mesmo dar certo.

Por tudo isso, uma coisa é certa. A mudança na lei enfrentará grandes resistências, sobretudo da corporação organizada. E isso é um sinal de que Temporão pode estar no caminho certo.