Título: Vento a favor
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 16/05/2007, O País, p. 4

No dia em que o dólar quebrou a barreira dos R$2, o presidente Lula deu uma demonstração de confiança no futuro sem precedentes na nossa história recente, falando de sua própria sucessão de maneira direta: não "trabalha com a hipótese de um terceiro mandato", mas quer fazer seu sucessor. Faltando mais de três anos e meio para o fim de seu segundo mandato, Lula não receia virar um "pato manco", gíria americana que identifica um político em fim de mandato sem perspectivas futuras. Ao contrário, no momento até os potenciais candidatos da oposição parecem querer pelo menos sua neutralidade, na expectativa de que ele será um grande eleitor em 2010.

Ao dizer que vai se empenhar para fazer seu sucessor porque quer dar continuidade a seu programa de governo, Lula faz o contrário dos tucanos, que nas duas eleições que perderam para ele tentaram, de maneiras diversas, se liberar da herança dos oito anos de seu próprio governo, com carga de culpa pelos erros cometidos que os impediam de defender os avanços conseguidos, como aconteceu recentemente com as privatizações.

Lula defende até o indefensável, como no caso do mensalão, e assume como suas medidas de outros governos, como fez ontem ao falar do controle da "farra do boi" dos estados com as contas públicas, certo de que sempre haverá quem o siga, e acaba se beneficiando da bravata de que "nunca antes neste país" se fez tanto em tantas áreas. É claro que ainda é cedo para decisões finais, mas ontem os dois lados da disputa mexeram peças importantes no tabuleiro eleitoral.

O governador paulista, José Serra, teve que superar o mal-estar provocado pela "invasão" de seu território político pelo concorrente interno, o governador de Minas, Aécio Neves, e buscou tirar dele um compromisso público, dizendo na entrevista coletiva conjunta que estão acertados: "afirmando, reciprocamente, a idéia de que estamos juntos, e vamos estar juntos nos próximos anos para o que der e vier".

O fato é que o jantar na noite anterior em homenagem a Aécio, embora não tenha sido tão representativo de uma força política do governador mineiro junto ao empresariado paulista, criou constrangimentos nas hostes serristas, a ponto de o ex-presidente Fernando Henrique ter tido que se empenhar para que Serra comparecesse.

O governador mineiro já havia feito, na semana anterior, uma jogada interna forte ao se encontrar em público com o presidente do PMDB, Michel Temer, e ter deixado vazar que fora sondado para entrar no partido.

Mais do que uma possibilidade real neste momento, o desejo do PMDB de tê-lo como candidato à Presidência serve para que reforce suas posições dentro do próprio PSDB, indicando que é uma boa opção política para outros partidos.

Até onde a vista alcança, porém, seria uma jogada política de alto risco Aécio passar-se para outras hostes partidárias, ainda mais sendo o PMDB esse saco de gatos de líderes regionais que facilmente poderiam se rebelar diante de uma liderança forte que surgisse como fato consumado na sucessão presidencial.

Político hábil que é, e com a vantagem de ser neto de Tancredo Neves, uma das estrelas do antigo MDB, Aécio tem todas as condições de reverter uma eventual rejeição, pois nem tão "estranho no ninho" assim ele é, tendo iniciado sua carreira política no PMDB ao lado do avô, como chefe da juventude do partido. Mas com o PMDB não há fatos consumados, e muitas vezes alguns de seus líderes preferirão perder uma eleição presidencial a ganhá-la com alguém que não seja de seu grupo.

Ao dizer ontem que sua base partidária terá um candidato à sua sucessão, Lula reafirmou indiretamente a idéia de que o candidato pode não ser obrigatoriamente do PT, o que, se parece à primeira vista difícil de acontecer, estimula a ambição dos demais partidos, e reforça a idéia do PMDB de que, sendo o maior partido do bloco, tem precedência para indicar o candidato à sucessão de Lula.

Mas o PT é outro que preferirá perder a eleição a perder a condição de partido hegemônico da base aliada. O governador Aécio Neves, mesmo com todo o apoio de Lula - e tudo indica que o movimento do PMDB está sendo muito estimulado por ele - poderia se ver na situação de, mesmo domado o PMDB, não ter o apoio explícito do "grande eleitor" contra um candidato petista.

É essa quase impossibilidade de o PT aceitar uma posição secundária na sucessão que leva os aliados de esquerda, o chamado "bloquinho" - PSB, PDT, PCdoB - a pensarem na candidatura de Ciro Gomes como alternativa da base aliada. Neste primeiro momento, todos os da base aliada trabalharão para o sucesso do segundo mandato de Lula, não importando o quanto distantes estarão em 2010. A filtragem será feita à medida que o tempo for encurtando, na reta final da sucessão.

A união do PSDB com o "bloquinho", numa improvável chapa Aécio Neves-Ciro Gomes, não passa de uma tentativa do presidente do PSDB, Tasso Jereissati, de unir os dois pólos políticos em que se divide sem que tenha que optar por um deles, como fez nas eleições anteriores. O mais lógico, do ponto de vista tucano, seria que Serra e Aécio pudessem caminhar juntos, o que os transformaria em candidatos quase imbatíveis na união dos dois maiores colégios eleitorais do país.

Mas dificilmente um dos dois abrirá mão de ser cabeça-de-chapa, o que poderá levar a um racha irreparável do partido, tornando mais fácil a vitória de um candidato da base aliada. O quadro no momento sendo esse, não é de se espantar que o presidente Lula tenha se mostrado tão à vontade ontem na entrevista coletiva.