Título: Corrupção endêmica
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 18/05/2007, O País, p. 4

Em outubro de 1997, dias antes da chegada do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, o governo brasileiro ficou irritado quando se revelou que um relatório preparado pelo governo americano para empresários e autoridades que o acompanhavam afirmava que a "corrupção era endêmica no Brasil", e também ressaltava que o Brasil estava classificado entre os piores países no índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional. O relatório incluía o Judiciário no rol das instituições corruptas do país, e, em desagravo, o Supremo Tribunal Federal se recusou a receber a visita protocolar do presidente americano.

Dez anos se passaram, o Brasil continua muito mal classificado no índice da Transparência - caiu cinco posições no ano passado, no auge da crise do mensalão -, o Poder Judiciário vê alguns de seus membros envolvidos em graves denúncias de corrupção, como nas recentes operações da Polícia Federal sobre venda de liminares, e já não é mais possível indignar-se com a classificação de "endêmica" de nossa corrupção.

A cada prisão em massa de políticos, juízes, empresários, autoridades dos mais diversos escalões da República, nos mais variados pontos do país, sem que se saiba depois que fim levaram as investigações, o que aconteceu com os acusados, quem afinal era mesmo culpado, fica a desagradável sensação de que a roubalheira é generalizada.

E também a impunidade, muito devido ao nosso sistema Judiciário falho e lento, mas também muitas vezes à ação apressada do Ministério Público e da Polícia Federal, que acabam fazendo muito estardalhaço, mas não obtêm provas contra os acusados.

Ao mesmo tempo, quando em uma dessas gravações "feitas com a autorização da Justiça" ouve-se claramente os acusados combinando propinas e esquemas, não é possível entender como uma pessoa dessas consegue escapar de uma condenação no final do processo.

A mais recente operação da Polícia Federal demonstra como a corrupção trabalha quase em tempo real. Já havia esquema para burlar as licitações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que mal saiu do papel.

Pois também nos projetos do PAC que tramitam no Congresso há sinais de que os interessados em obter vantagens nas licitações governamentais se aproveitaram da pressa que o governo tem de colocar seus programas em andamento para abrir brechas na legislação por onde poderão passar muitas ilegalidades. É o caso do projeto de lei nº 32/2007, que trata de modificações na Lei de Licitações e Contratos, que a Câmara dos Deputados aprovou, como parte do pacote do PAC enviado pelo Executivo.

Entre as modificações introduzidas pelo projeto de lei, está a redução de prazos para apresentação de recursos administrativos a decisões dos agentes públicos responsáveis pela condução de licitações (Art. 109). Segundo Cláudio Weber Abramo, da Transparência Brasil, "tal modificação é extremamente equivocada. Não apenas trará ineficiência econômica, como representará verdadeiro convite à corrupção".

A intenção do governo, já revelada por diversas autoridades e políticos envolvidos com o assunto, é dificultar a interposição de recursos. Setores do governo acusam empresas de usar recursos apenas para atrasar as obras e prejudicar seus concorrentes vitoriosos, e a redução do prazo seria para impedir essa prática, que teria se tornado comum.

Abramo lembra que é pouco provável que uma empresa gaste dinheiro apenas para prejudicar uma outra, e ressalta que existem na legislação maneiras de coibir essa prática, quando detectada. Hoje, as empresas concorrentes têm cinco dias após cada etapa para interpor recursos a decisões da administração, e, pelo projeto de lei, o prazo passará a ser de apenas dois dias. Eliminando na prática a possibilidade de uma licitação ser contestada na Justiça, o projeto do governo gera um ambiente concorrencial viciado, ampliando a margem para fraudes nas licitações. A medida terá também conseqüências econômicas graves, pois, segundo Cláudio Weber Abramo, as empreiteiras regionais não teriam agilidade suficiente para disputar concorrências em outros estados e, eventualmente, contestar decisões em prazo tão exíguo, o que resultaria em elevação de preços e evidente perda de eficiência econômica.

Aprovado na Câmara, o projeto acabou de receber emendas na Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado, e o relatório final será ainda apreciado. O senador Demóstenes Torres, que é membro da Comissão, acha que a Lei de Licitações precisa de muitos aprimoramentos, que tem discutido com o Ministério Público.

Ele cita a prática de colocar aditivos nos contratos, que acaba levando ao superfaturamento nas obras. Segundo ele, os aditivos eram naturais na época da inflação descontrolada, e hoje, com os preços praticamente estáveis, deveriam ser impedidos pela legislação. Ele concorda com a crítica de que a redução dos prazos pode favorecer a delinqüência.

Também o senador Agripino Maia acha que esse assunto tem que ser visto "com todo cuidado". Segundo ele, votar num momento como esse algum projeto que diminua rigor em controle de licitação "é um perigo".