Título: O embrião e o Supremo
Autor: Barreto, Vicente de Paulo
Fonte: O Globo, 19/05/2007, Opinião, p. 7

É louvável a iniciativa do Supremo Tribunal Federal de provocar uma discussão sobre o embrião antes de tomar uma decisão acerca das pesquisas com células-tronco. Esse tipo de discussão ampla e substantiva sobre o estatuto do embrião faltou quando da votação da lei da biodiversidade, uma lei que foi votada às pressas sob a pressão dos lobbies no Congresso. Tratar numa mesma lei a possibilidade do plantio de soja transgênica e do uso de células-tronco é no mínimo estranho, pois são questões de peso ético muito diferente. Havia pressa na votação sobre a soja transgênica, e aproveitou-se para introduzir na mesma lei a norma sobre o uso de células embrionárias humanas em pesquisas.

Não houve, então, a coragem para um debate mais sério sobre aspectos que não podem ficar reduzidos ao âmbito jurídico do "pode" ou "não pode" casuístico; um debate, antes de tudo, com enfoque na ética, que vá aos pressupostos antropológicos e simbólicos das ações humanas. Essas ações humanas não respondem apenas a necessidades imediatas, mas passam mensagens de longo prazo que requerem interpretação. Entretanto, para entrar neste debate devem-se abandonar posições e interesses e abordar questões de fato relevantes.

A falta de uma discussão que integre diferentes saberes é sentida no Brasil desde a introdução de novas biotecnologias e sua respectiva legislação. Isto ocorre porque não existe um órgão nacional para a bioética, que promova essa análise com a participação da sociedade. Nessas condições, a discussão fica reduzida a um círculo de especialistas identificados com os cientistas.

Não se pode reduzir um debate que envolve significados simbólicos mais profundos ao puro contexto jurídico: são temas que exigem antes uma abordagem segundo a ética, que não pode ser identificada com a simples normatização jurídica.

Por isso, o debate sobre o embrião não deve ficar circunscrito à comunidade dos cientistas, dos juristas e aos representantes de organismos da sociedade, mas necessita incluir pensadores das áreas de ciências humanas, principalmente a filosofia e a teologia, para que a perspectiva ética seja assegurada.

Em outros países, principalmente os europeus, questões relacionadas às biotecnologias são continuadamente discutidas em profundidade. Por que não se segue, por exemplo, o modelo do Comitê Nacional de Bioética da França, que conduziu, com os diferentes segmentos da sociedade, um exame pormenorizado sobre o estatuto do embrião?

A reflexão sobre a ética nos procedimentos científicos, no Brasil, tem sido substituída pelo exame sociológico, pela regulamentação jurídica e, no caso da biotecnologia, pela opinião de cientistas. E os cientistas - conforme presenciamos na audiência pública, realizada no Supremo Tribunal Federal - não têm uma opinião uniforme sobre a origem da vida e do próprio estatuto do embrião.

Se a religião, na Idade Média, era o princípio de organização social e os seus representantes ditavam normas e definiam dogmas, na Idade Moderna, a ciência e o sistema técnico por ela criado ocupam progressivamente esse lugar de configuração social, povoando o imaginário das pessoas e estabelecendo cânones de comportamento. Os cientistas são os novos sacerdotes que oferecem a salvação e mostram o que se deve crer. Se o Iluminismo, no século XVIII, foi a crítica da onipotência social da religião, a bioética, no século XX, surgiu como um contraponto crítico da onipotência da ciência e da técnica.

Entender, entretanto, a bioética como moderadora dos efeitos, muitas vezes nefastos, do progresso científico seria esvaziá-la de sua função de crítica da ciência e da técnica. O dever fundamental da filosofia, de investigar a natureza do conhecimento e os fundamentos do bem e do mal na sociedade, encontra-se ausente nesse tipo de "bioética", oriunda da opinião de cientistas, sem familiaridade com a problemática da ética contemporânea.

É, portanto, inócuo e inconseqüente promover audiências públicas para, na melhor das hipóteses, delas obter vagas diretrizes para as políticas públicas, como as que serão consagradas nas decisões do Supremo Tribunal Federal.

VICENTE DE PAULO BARRETTO e JOSÉ ROQUE JUNGES são professores da Uerj e da Unisinos.