Título: 'Trato da paciente, esse é o foco'
Autor: Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 20/05/2007, O País, p. 3

A rotina dos médicos que cumprem a lei na rede pública.

RIO, SÃO PAULO e BRASÍLIA. Eles formam uma equipe singular na rede de maternidades públicas do Rio de Janeiro. Seu dever é cumprir o segundo parágrafo do Artigo 128 do Código Penal, que autoriza à mulher interromper a gestação em caso de estupro. Em pouco mais de seis anos, o dispositivo foi usado 50 vezes, número que a equipe considera baixo para a realidade da violência sexual contra mulheres no estado (8.758 estupros registrados no mesmo período, de 2000 a 2006).

O Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães, em São Cristóvão, é a unidade de referência para aborto legal em vítimas de estupro no estado. É ali que a equipe liderada pela obstetra Anna Christina Willemsens, chefe do Serviço de Tocoginecologia, convive com casos de medo, depressão e revolta, misturadas à angústia de esperar um filho indesejado.

No Brasil, foram internadas no ano passado, para aborto legal (estupro e risco de vida para a gestante), 2.068 mulheres, a um custo de R$303 mil, segundo o Ministério da Saúde. Uma pesquisa feita pelo Ibope para a ONG Católicas pelo Direito de Decidir mostra que 48% dos brasileiros desconhecem as situações em que o aborto pode ser feito legalmente.

Embora o Código de Ética desobrigue os médicos, por motivos de foro íntimo, de interromper uma gravidez, nenhuma das mulheres que procurou o Fernando Magalhães e se enquadrava no protocolo deixou se ser atendida.

- Se algum colega não quiser, eu mesma faço. Não deixamos de atender - afirma Anna Christina.

De formação católica, a chefe da unidade diz que, há dez anos, se recusaria a cumprir a lei:

- Quando comecei a conviver com essas mulheres, aprendi a ver a situação de outra maneira. Faço sem peso na consciência.

O serviço no instituto é simples e desburocratizado. Não se exige boletim de ocorrência ou outro comprovante. Basta o comunicado da vítima e depoimentos de parentes. É feito exame para checar se a gestação ocorreu mesmo na data referida pela vítima.

Embora a lei não determine o prazo máximo para a interrupção, a unidade segue o consenso de que o limite é de 20 semanas. Se a gravidez ultrapassar este limite, o aborto é descartado e a vítima, encaminhada para o pré-natal e para o serviço de saúde mental - onde, se quiser, terá orientações sobre a adoção.

O maior programa de aborto legal no país funciona no Serviço de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, do governo de São Paulo. Do início do projeto, chamado "Bem-Me-Quer", em 1994, até 2006, foram atendidos 14.844 casos de violência sexual, com a realização de 598 abortos legais. Em nenhum deles foram registradas mortes ou seqüelas nas mulheres.

Levantamento inédito do Hospital Pérola Byington, entre 2005 e 2006, mostra que, de um total de 140 casos de aborto legal, 48,1% das mulheres se declararam católicas; 29,2%, evangélicas; 4,5%, espíritas; 0,9%, protestantes; 1,8%, simplesmente "cristãs"; e 9%, sem religião.

- O fato é que, independentemente da religião, a mulher vítima de violência entende o aborto como sua melhor opção. Elas nos dizem sempre: "É o filho de um monstro que me violentou. Como terei o filho de um monstro? Como eu poderei amá-lo? Como vou lhe dizer quem é o seu pai? E se o bebê se parecer com ele? Olharei meu estuprador todos os dias?"- afirma a psicóloga do Pérola Byington, Daniela Pedroso.

Em Brasília, o Hospital Regional da Asa Sul (HRAS) é a unidade de referência para abortos legais no Distrito Federal. O ginecologista José Marsiglio Neto, um dos três médicos responsáveis pelo setor, diz que é contra o aborto e que já teve crises de consciência:

- Não gosto de fazer. Trabalho no serviço de abortamento, mas quero que ele acabe. Quando o serviço de prevenção funcionar, o serviço de abortamento vai acabar - diz Marsiglio, lembrando que teve formação católica: - Tive dramas de consciência. Era conflito religioso. Uma vida que está sendo tirada, um espírito que está encarnando. Agora não mais. Estou vendo o que acontece com a mãe. Estou tratando da paciente, esse é o foco. Ela é uma vítima de violência.

Chefe do Núcleo de Serviço Social do HRAS e à frente do Programa Violeta, como é chamado o Programa de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual, a assistente social Marta Cristina Tenório conta que o hospital foi alvo de protestos, após a criação do serviço de aborto legal, em 1996. Depois disso, diz ela, mulheres contrárias ao aborto já se passaram por grávidas interessadas em abortar apenas para testar o controle do hospital e verificar se a prática fica mesmo restrita aos casos previstos em lei.

- Para trabalhar nesse programa, você tem que estar destituído de toda convicção moral. Sou católica, casada, tenho três filhos. Não estou aqui para julgar ninguém, mas para prestar assistência. Para quem está lá fora, é muito fácil julgar. Essa moral cai por terra quando ocorre com alguém da família - diz Marta.