Título: Aborto S/A: um lucrativo negócio que corrompe, rende votos e faz vítimas
Autor: Otavio, Chico e Agegge, Soraya
Fonte: O Globo, 20/05/2007, O País, p. 4

POLÊMICA: Hoje, 11% da clientela da rede clandestina têm entre 10 e 19 anos.

País gasta R$33 milhões anuais com mulheres que procuram métodos ilegais.

RIO e SÃO PAULO. O aborto ilegal e a esterilização definitiva movimentam um lucrativo mercado negro no Brasil, que envolve uma rede de clínicas clandestinas, venda de medicamentos abortivos e a oferta de laqueadura de trompas por serviços sociais controlados por políticos.

Essa realidade bate diariamente na porta dos hospitais públicos: só no ano passado, ocorreram 230.523 internações motivadas por curetagens feitas após complicações em abortos inseguros ou espontâneos na rede pública, ao custo de R$33 milhões, segundo o Ministério da Saúde.

- Tomei um remédio e tive hemorragia. Fiquei cinco dias internada no Hospital de Nilópolis - conta Maria (nome fictício), de 22 anos.

Maria engrossa a estatística de mulheres que, por recorrer a métodos não confiáveis (incluindo curandeiras), adoecem e acabam na rede pública. Ela disse que, durante os cinco dias, sofreu preconceito:

- As enfermeiras passaram a me tratar mal quando souberam o que eu fazia ali.

Outro efeito do mercado negro é a corrupção. No mês passado, o Ministério Público fechou uma clínica de aborto em Madureira. Como sempre ocorre com casos do gênero, havia no local um livro-caixa com a relação de policiais que recebiam propina para garantir o seu funcionamento.

Os médicos da clínica, segundo a denúncia, cobravam em média R$400 para a cirurgia e faziam aborto até o terceiro mês de gravidez. A mesma clínica é exemplo de outro efeito perverso desse mercado. Os promotores só chegaram ao local depois de encontrar o pai de uma mulher que morreu na clínica após fazer o aborto.

"Só procuram o hospital quando já estão à morte"

A médica Marília Namo, chefe de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Municipal Artur Ribeiro Saboya, no Jabaquara, em São Paulo, disse que, neste mês, a unidade recebeu duas jovens com casos de abortos provocados que acabaram morrendo.

- Eram bem pobres e deixaram filhos. Como é crime, as mulheres sentem medo de prisão e só procuram os hospitais quando já estão à morte. A maioria pensa que abortar é sangrar. Morrem de hemorragia, de infecção - conta.

Como Marília, médicos, psicólogos e assistentes sociais contam histórias de horror que fazem parte do seu cotidiano em hospitais públicos. A maioria das mulheres, pobres e com baixa escolaridade, recorre a métodos que causam hemorragias e perfurações do útero.

- Usam Cytotec, permanganato, talos de plantas, medicamentos para diabetes e até cocaína injetada no útero para tentar abortar - conta o coordenador da Saúde da Mulher na Prefeitura de São Paulo, Júlio Mayer.

A principal fonte que alimenta esse mercado, diz a vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Maria do Carmo Leal, é a falta de opções da mulher para planejar o tamanho de sua prole. Ela lamenta que 11% dessas mulheres estejam na faixa de 10 a 19 anos. Por isso, Maria do Carmo defende a criação de um serviço ginecológico na escola pública.

Em São Paulo, em 2006, ocorreram 13.700 curetagens pós-aborto inseguro ou espontâneo. Um aborto feito de maneira segura, mas ilegal, custa entre US$500 e US$3 mil. Os clandestinos e inseguros custam a partir de R$200, com parteiras. Remédios supostamente abortivos, como o Cytotec, são vendidos a todo preço até entre os ambulantes de cidades grandes.

- As mulheres mais ricas fazem abortos em clínicas privadas, ilegais, mas não necessariamente inseguras. As mortes ocorrem mais entre as mais pobres e desinformadas. Então, na verdade, o aborto revela as diferenças sociais do Brasil - diz o coordenador do projeto Bem-Me-Quer, no Hospital Pérola Byinton, Jefferson Drezzett.

Não há estatísticas oficiais de abortos ilegais. As Delegacias da Mulher de São Paulo registraram 85 casos flagrados em 2006. Nos primeiros três meses de 2007, foram dez.

Embora a Lei 9.263, que trata de planejamento familiar, ofereça a esterilização voluntária na rede pública para mulheres maiores de 25 anos ou que tiverem pelo menos dois filhos, hospitais já congestionados priorizam casos em que uma futura gravidez expõe a mulher a risco de vida.

- Como é difícil conseguir no sistema público, o medo de engravidar gera um aproveitamento político. Até hoje, há quem acredite que fazer ligadura ganha eleição - lamenta a secretária municipal de Saúde de Mesquita (Baixada Fluminense), Roseli Monteiro.

A Câmara Municipal de Mesquita tem oito vereadores. Destes, dois são obstetras.