Título: Biopolítica
Autor: Oliveira, Rosiska Darcy de
Fonte: O Globo, 20/05/2007, Opinião, p. 7

Em boa hora o ministro da Saúde quis ouvir a voz das mulheres no debate sobre o aborto como um problema de saúde pública. Elas conhecem o assunto. Os dados de internação por seqüelas são irretorquíveis. Qualquer reiteração, redundante. A ineficiência do planejamento familiar dispensa comentários.

Mais do que ninguém sabe disso o ministro Temporão, que, no exercício de suas responsabilidades, quis discutir o que é causa mortis de mulheres desvalidas que se automutilam e acabam exangues nos hospitais. A ele ficam agradecidas não só aquelas que talvez escapem desse destino, mas também outras mulheres que há anos defendem a descriminalização e quase sempre encontram nas autoridades, que deveriam ser nossos melhores interlocutores, ouvidos moucos. Talvez a diferença esteja em ser Temporão um especialista de saúde pública ou, simplesmente, um homem corajoso.

A Igreja criticou o ministro.

A Igreja é contra um plebiscito que debata o aborto. É contra a pílula, é contra os preservativos mesmo em tempos de Aids, é contra a pesquisa sobre células-tronco, horizonte da medicina do futuro, e contra a união civil de homossexuais.

A Igreja tem suas razões coerentes com seus dogmas e o direito de sustentá-las. Que o faça no curso de um debate público que os plebiscitos exigem. Ninguém conseguirá por muito tempo bloquear, no Brasil, a discussão ampla e aprofundada dessas questões, pela simples razão que esses temas encarnam, no sentido próprio do termo, angústias essenciais de nosso tempo. Foi assim em todos os países, mesmo aqueles de maioria católica, como recentemente em Portugal, onde aborto deixou de ser crime.

Alguém ainda acredita que pode colocar tarja preta em temas que afligem cada um no seu dia-a-dia, nos seus círculos de convivência, dentro das famílias onde meninas saídas da puberdade engravidam, onde a sexualidade é cada vez mais precoce, onde filhos e filhas, em alto e bom som, declaram-se homossexuais, onde idosos, abatidos por doenças neurológicas, sabem que pesquisas com embriões como as de Mayana Zatz representam uma esperança real de cura?

O corpo humano tornou-se um lugar de escolhas individuais e de sociedade que não se constroem sem esclarecimento, escolhas para as quais precisamos de luzes que nos ajudem a construir, com conhecimento de causa, nossa própria liberdade. Trevas, não.

Está emergindo uma biopolítica em que o repertório de liberdades se amplia, desmascaram-se as proibições herdadas, os argumentos de autoridade pela autoridade. Os pontos de vista já não são os do passado, que o presente desmente, são refletidos, muitas vezes sofridos, o contrário mesmo da leviandade.

A política é chamada a se pronunciar sobre processos vitais da existência humana do nascimento à morte. É no contexto desse desafio que o debate público sobre o aborto é necessário. Assim como sobre a sexualidade humana, as novas famílias, a união civil de homossexuais. Assim como sobre a pesquisa com embriões que, descobrindo a base biológica das doenças, não se resigna ao destino e abre-se à esperança. Assim como a morte com dignidade, recentemente objeto de uma resolução corajosa do Conselho Nacional de Medicina. São apelos à consciência individual e à decisão coletiva que caracteriza as democracias, exigências de um tempo em que a biologia deixou de ser destino e abriu-se em leque de possibilidades.

O aprofundamento da democracia significa participação do maior número no desenho de políticas que tragam resposta aos problemas. Ora, quem sabe responder por que o aborto tomou a proporção dramática que alcançou no país? O que deixou de ser feito, o que deverá ser feito? Tachar de crime não coíbe um gesto que é sempre doloroso e desesperado e que tem sempre três ou quatro testemunhas, portanto "cúmplices". Para que serve inventar tantos "criminosos"? Por que insistir em ignorar que a decisão de fazer um aborto continuará sendo do âmbito mais privado e que, tomada essa decisão, políticas repressivas infernizam as mulheres, põem suas vidas em risco, mas não impedem o gesto?

A Igreja insiste em continuar a discutir onde começa a vida, ameaçando com a excomunhão parlamentares que votem a favor da descriminação do aborto. Há vinte anos, na França, o aborto, em condições preestabelecidas, deixou de ser crime, sem excomunhões. Mesmo porque excomungáveis seriam François Jacob e Jacques Monod, ambos agraciados com o Nobel de Biologia.

Convicções religiosas não podem ter um efeito paralisante, transformar-se em imposição. Já é tempo de apoiar quem ainda tem de sofrer a dor afetiva que é um aborto. E, rapidamente, trabalhar para minorar a incidência desses casos, que é o que o ministro da Saúde quer, quando mobiliza a sociedade para debater o problema.

Tentar impedir o livre trânsito de idéias é não somente nocivo à democracia. É precária percepção do modo de funcionamento das sociedades modernas. Uma aposta no atraso.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora e presidente do Centro de Liderança da Mulher.