Título: 'Aqui se mata barato, até por cachaça'
Autor: Awi, Fellipe
Fonte: O Globo, 20/05/2007, O País, p. 14

São Félix não tem Ministério Público, Vara do Trabalho ou posto do Ibama

SÃO FÉLIX DO XINGU (PA) A ameaça de morte é o maior, mas não o único desafio de um trabalhador de São Félix do Xingu que se sentir explorado pelo patrão. Para ir a uma Vara do Trabalho, terá de viajar 254 quilômetros até Xinguara. Defensor público, só em Redenção, a 360 quilômetros. Nenhum município do Alto Xingu tem Ministério Público, posto do INSS ou da Receita Federal.

- O Incra está ameaçando sair daqui, a despeito de todos os problemas de disputa de terras que temos, e a prefeitura está se virando para complementar no combustível dos carros e na alimentação dos policiais. Tudo isso causa impunidade. Como pode uma região tão extensa ser tão abandonada pelo poder público? - lamenta o prefeito de São Félix, Denimar Rodrigues (PMDB).

Juiz na cidade, apenas quatro dias por mês

Somadas suas áreas, São Félix, Tucumã e Ourilândia do Norte são maiores que os estados de Santa Catarina ou Pernambuco. Terceiro maior município do Brasil, São Félix tem quase o dobro do tamanho do Estado do Rio. Há um Fórum, mas serve apenas para abrigar o juiz ou o promotor durante quatro ou cinco dias por mês, em sistema de escala que não é divulgado para a população.

- Quando um juiz ou promotor aparece é um acontecimento, a notícia corre de boca em boca. Aí vai todo mundo para a porta do Fórum - conta o comerciante Clemivaldo Alencar.

A indignação de Clemivaldo com a falta de assistência aos moradores é alimentada por um drama familiar recente. Em novembro do ano passado, seu irmão e sócio Clemivan, de 30 anos, foi assassinado a facadas no meio da rua por dois homens, que também o degolaram. O crime não foi motivado por disputas trabalhistas ou de terra - os assassinos gostavam da mulher com quem Clemivan saíra naquela noite -, mas a história retrata bem o círculo de sangue que nasce pela certeza de impunidade no Alto Xingu. Um dos acusados do crime, Cleonardo de Freitas, está foragido, e o outro, Valdegran Almeida, foi linchado e degolado por um grupo de moradores.

- Meu medo é que achem que fomos nós que mandamos matar o Valdegran e aí venha um parente dele para matar um de nós. É uma guerra que não vai ter fim - diz Clemivaldo.

Histórias tão ou mais medonhas são comuns em São Félix. A impressão é de que todo mundo conhece alguém vítima de um crime bárbaro. Só no mês passado, houve o trabalhador esquartejado a moto-serra, o mototaxista que teve a pele do rosto arrancada e o sujeito que matou a mulher, a enteada e a neta de 2 anos para receber um seguro. Nos três casos, houve vingança contra os matadores.

- Aqui se mata barato e com muita facilidade. Até por uma garrafa de cachaça - diz uma advogada de Tucumã que pediu para não ser identificada.

A ausência do Estado também se manifesta na defesa do meio ambiente. Embora seja há cinco anos o primeiro município brasileiro em desmatamento, com 770 quilômetros quadrados de mata derrubada em 2005 e 2006, São Félix sequer tem um posto do Ibama. O mais próximo fica em Xinguara. Um quarto de seu território é formado por reservas indígenas, mas a Funai mais próxima é em Redenção.

- Existe uma situação antiga de desrespeito à terra indígena dos Apiterewa Parakanã, invadida por madeireiros, grileiros e até por um assentamento do Incra. É uma série de omissões do estado na mesma situação - afirma o frei Jean Raguènés.

População aumentou com abertura de unidade da Vale

Apesar dos problemas, a população dos três municípios, cerca de 80 mil habitantes, segundo o IBGE, está em curva crescente. Além do interesse pela exploração da Terra do Meio, contribui para isso a instalação de uma unidade da Vale do Rio Doce em Ourilândia. A empresa está interessada em milhões de toneladas de níquel das serras do Onça e Puma. Como as contratações não começaram, os trabalhadores que chegam são logo levados para as fazendas. Enquanto isso, os três municípios brigam pela maior parcela dos royalties da Vale.

- Não podemos ver a Vale como um substituto do governo, mas ela tem responsabilidades pelo impacto que vai causar aqui. Até agora investiu R$150 mil em São Félix, mas gastou muito mais em publicidade - afirma o prefeito. (F.A.)