Título: Que passa?
Autor: Thomé, Débora
Fonte: O Globo, 20/05/2007, Economia, p. 30

O que está acontecendo na Argentina, depois da crise que tirou do país mais de 15% do seu PIB entre 2000 e 2002, continua sendo um caso difícil de explicar. A produtividade está voltando este ano aos patamares pré-crise; o desemprego, que chegou aos 22,4% em 2002, está abaixo dos 10%, e o investimento interno cresce. Mas há riscos que persistem: inflação alta, escassez de energia batendo à porta, pouco investimento estrangeiro. Enquanto isso, o país se prepara para as eleições de outubro.

A virada da Argentina tem mesmo deixado muita gente confusa. Alguns números do furacão que passou por lá nos anos de crise: o PIB nominal em dólar caiu a menos da metade; a inflação chegou a 41%; a dívida externa, a 156% do PIB. Depois disso vieram o calote, os recordes intermináveis no risco-país e a certeza de que, naquele solo, nada mais daria frutos.

Mas eis que o mundo dá voltas, a China começa a consumir vorazmente, o preço dos produtos que a Argentina exporta sobe e o país começa a apresentar alguns bons números na economia (ainda que, sempre é bom ressaltar, permaneçam sérios problemas). O Brasil, com números relativos menos robustos, pergunta-se por que lá continua dando certo.

- Na América Latina, é muito comum as pessoas acharem que, no país vizinho, é que está acontecendo a realização dos sonhos do seu país. Assim é com Brasil e Argentina - conta Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Candido Mendes, que estudou lá uma temporada.

Um estudo da MB Associados comparou países que viveram crises graves, como Tailândia, Rússia, Equador. Deles, a Argentina foi quem mais se recuperou. Segundo o levantamento, a guinada para o alto entre 2002 e 2006 foi generalizada, com destaque para o crescimento do investimento e das importações de máquinas e equipamentos. Essas importações cresceram 24% no ano passado e 35% em 2005. Contudo a má notícia é que os dados do primeiro trimestre mostram que o ímpeto de investir começa a diminuir.

Um dos caminhos escolhidos pela Argentina foi aumentar a participação do setor público. O presidente Kirchner é centralizador, e gosta de decidir por ele mesmo os caminhos a serem seguidos; um deles, o de maior participação do Estado na economia. Os investimentos públicos em infra-estrutura, por exemplo, saíram de 6,5% para 11,3% do total de investimentos. Parte disso foi facilitada pelo default, que possibilitou o aumento dos gastos. Hoje o Estado argentino investe 2,2%. Diz o estudo da MB: "A Argentina conseguiu mostrar um vigor que não se esperava; cerca de metade do crescimento médio dos últimos anos veio por aumento de produtividade."

Os bons ventos do cenário mundial ajudaram as exportações argentinas a crescerem 11% no primeiro trimestre, mas, quase tudo foi aumento no preço, diz um relatório do WestLB. Aproveitando o momento, o presidente sobretaxou as exportações e, com isso, sua receita ficou maior.

No câmbio, como frisam economistas de uma linha menos liberal, pode morar parte da explicação. Diferentemente das demais moedas emergentes, o peso permanece desvalorizado.

- O país, além de atrair pouco investimento estrangeiro, tem juro real negativo, então não entra tanto dólar assim - comenta Sérgio Vale, da MB.

O dólar valorizado tem ajudado a preservar, por exemplo, a indústria têxtil. Mas não resolveu vários outros problemas. Alguns, ajudou a criar. O dólar alto, o forte aumento dos salários (e, portanto, do custo do trabalho) e a economia aquecida estão empurrando a inflação para números que poderiam alcançar 20% no fim do ano. E não houve produtividade ou controle de preço, como praticado lá, que contivesse a alta. Diante dessa iminência, que providência tomou Kirchner? Mudou a forma de cálculo da inflação. Que feio!

Diante de todo esse quadro, o fenômeno do crescimento argentino acaba parecendo bastante frágil. Robusto nos números, mas com sérias ameaças. O investimento direto estrangeiro é pouco, a indústria cresce, mas não há mais energia extra disponível, sem falar na inflação.

Porém, em relação à Argentina, muitas vezes já pensamos: agora vai dar tudo errado. E não dava. Vai ver é só inveja de vizinho. De uma coisa, pode-se estar certo: até as eleições, em outubro, o governo Kirchner garantirá, mesmo que de formas tortuosas, a produção de bons números na economia argentina.