Título: Navalha na carne
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 22/05/2007, O País, p. 4

Mais que discutir as conseqüências políticas que provocará a nova leva de escândalos trazida à tona pela Operação Navalha, da Polícia Federal, importa registrar como se torna imperativo, para combater essa "corrupção endêmica", a aprovação de algumas reformas institucionais. Assim como para a economia encontrar um caminho permanente de crescimento sustentado é preciso fazer as reformas previdenciária, trabalhista, tributária, também para que a democracia brasileira se fortaleça é preciso fazer diversas reformas, desde a política até aprofundar a do Judiciário.

Advogado e cientista político, Nelson Paes Leme gosta de usar a palavra "impunibilidade" para definir a principal causa de nossas amarguras na questão da corrupção. Ele explica que, diferentemente da impunidade, que é o ato ou o fato de restar alguém impune, a "impunibilidade" pode ser definida como a insuficiência, incapacidade ou a caducidade dos mecanismos judiciais e policiais à disposição do Estado para punir.

"Nossos códigos são diplomas sempre defasados e anacrônicos. Toda a nossa base legislativa penal é da década de 40, já carcomida e ultrapassada. Elitista e caduca, não mais atende aos anseios de uma sociedade cosmopolita e globalizada, cuja dinâmica e necessidades nada têm a ver com a dinâmica e necessidades dos tempos do Estado Novo, quando foi editada".

Ele cita o Código Penal, a Lei de Execuções Penais (esta editada sob Figueiredo) e o Código de Processo Penal como instrumentos "completamente ultrapassados e defasados. Estão completamente descompassados com a ousadia da ação dos cartéis do tráfico de entorpecentes. Desconhecem a pirataria cibernética, a devastação ambiental e o "colarinho branco", os "microondas humanos", os novos xerifes, entre outros atentados contemporâneos ao direito".

Já o deputado Chico Alencar, do PSOL do Rio, chama a atenção para o fato de que um dos meios de se combater a corrupção é a reforma política, "especialmente na questão do financiamento de campanha e na relação mandatos/ empresas". As mudanças realizadas de supetão no final do ano passado na legislação das campanhas eleitorais não tocaram no ponto essencial, os limites e as restrições aos financiamentos privados aos candidatos.

Atualmente, as doações e contribuições de pessoas jurídicas são permitidas até 2% do faturamento bruto do ano anterior, o que é considerado pelos especialistas um limite excessivamente alto. A legislação não trata do caixa dois nas campanhas, e apenas prevê punição para a empresa que doar acima do limite oficial.

Chico Alencar também questiona o instrumento das emendas parlamentares individuais, "fonte permanente de corrupção". O que torna o escândalo das licitações de obras públicas um caso especial, assim como foi o dos sanguessugas, é que se trata de um esquema tipicamente de políticos com um processo autônomo baseado nas emendas individuais dos parlamentares, que são de aprovação automática até um teto de R$5 milhões.

A prática de "vender" emendas já é disseminada no Congresso, o que leva a uma primeira reação de acabar com as emendas individuais dos parlamentares, o que seria um erro, pois deputados e senadores existem para isso mesmo, atender com suas ações às necessidades de suas bases políticas. O que tem que acabar é a quota a que cada parlamentar tem direito, e a aprovação automática, sem que o projeto seja discutido em qualquer instância.

O lado bom dessa história é que ela acontece no exato momento em que o governo negocia com os partidos de sua coalizão o preenchimento de cargos para o segundo escalão. O loteamento das direções de órgãos públicos, privilegiando aliados políticos e desprezando quadros de carreira, critérios técnicos e éticos, terá que ser repensado pelo governo. O caso do ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, demonstra que nem mesmo escolhas partidárias supostamente técnicas evitam que esse tipo de problema ocorra.

Ninguém pode ser contra a ação da Polícia Federal, e a quem leu minhas críticas como uma condenação das ações em si peço desculpas por não me ter feito entender. O título da coluna de sábado, "Ações inconseqüentes", pode ter dado a idéia de que criticava a ação da PF como irresponsável, quando o sentido era o de "ações sem conseqüência".

O que critico são os métodos espetaculosos, o uso, a meu ver abusivo, da "prisão temporária", que, embora tenha amparo na lei 7.960 de 21 de dezembro de 1989, só deveria ser utilizada em determinados momentos, para uma melhor investigação policial, e não generalizadamente. Além do mais, essa lei é considerada por muitos como inconstitucional. E, principalmente, a falta de provas consistentes que permitam que os presos sejam realmente condenados.

Mas também critico a morosidade e a ineficácia de nosso Judiciário, embora compreenda suas limitações e dificuldades. Para se ter uma boa idéia de como a situação é complexa, aí vai uma mensagem do juiz federal do Rio de Janeiro Rogério Tobias:

"Sem a intervenção do Poder Judiciário, as operações da Polícia Federal não obteriam o resultado que a sociedade quer e aplaude com entusiasmo. Não há prisão, interceptação telefônica, nenhuma busca e apreensão realizada pela Polícia Federal nas suas operações que não seja, prévia e expressamente, autorizada por um juiz, seja ele de primeiro grau, desembargador ou ministro de tribunal superior. Desta forma, não se sustenta o jargão "a polícia prende e a Justiça solta", pois, sem autorização judicial, sequer haveria prisões."