Título: TV pública na contramão
Autor: Catão, Marcos André Vinhas
Fonte: O Globo, 22/05/2007, Opinião, p. 7

A União Européia completa 50 anos, e a comemoração vem em momento extremamente propício. Depois de algumas hesitações, o Velho Continente parece que acertou o passo no plano econômico: crescimento sustentado, renda per capita similar à americana, com metade dos gastos em energia não-renováveis, e apoiada em um estado de bem-estar social muito superior ao dos americanos. A razão para o bom desempenho está na modernização da economia européia e de sua sociedade, abrindo espaço para um ambiente efetivo de livre iniciativa e de redução dos privilégios empresariais e de modelos estatais.

A base fundamental desse avanço está em uma expressão denominada ajudas de Estado. O conceito está consagrado no art. 87 do Tratado de Roma, e praticamente repetido na Constituição Européia, que impede a concessão de incentivos ou de qualquer espécie de ajuda financeira a empresas públicas, privadas ou mistas, salvo em raras exceções, e desde que sob autorização da Comissão Européia. Ao longo desses 50 anos, a vedação às ajudas de Estado na Europa eliminou privilégios e reduziu drasticamente o corporativismo político-empresarial, que vem redundando no crescimento econômico europeu.

Entre os poucos segmentos que restam como exceção está o das televisões públicas. Tal se deve ao fato de que o programa de eliminação das ajudas de Estado, ao ser gradual, já encontrou a Europa com esse modelo, sendo uma tradição a existência de televisões públicas nacionais, tais como a BBC na Inglaterra, a TVE na Espanha e a RTP em Portugal.

Todavia, cada vez mais essas televisões estão sendo pressionadas a modificar seu regime jurídico. Compreende-se perfeitamente que o Estado deve regular e não atuar como ente participante das telecomunicações. Não por outra razão, volta e meia, os países que possuem uma televisão pública são levados ao Tribunal de Justiça de Luxemburgo, em ações movidas por agentes econômicos. Geralmente os motivos que levam às referidas ações passam pela demonstração de práticas contra a livre concorrência no setor de telecomunicações, evidenciando a tênue linha que divide uma televisão pública como fonte de informação cultural ou como mero instrumento de privilégios em detrimento de outras empresas do setor.

Ao propagandear a televisão pública, fontes do atual governo tomaram como modelo o caso da BBC. É o clássico exemplo do querer/poder. Também seria interessante que aqui tivéssemos uma polícia inglesa. A realidade, todavia, nem sempre adere à intenção, residindo aí o risco da comparação. Mesmo na Europa, onde a realidade social e econômica é mais avantajada que a brasileira, existem várias televisões estatais que não possuem uma programação com qualidade educacional ou cultural superior à maioria das televisões brasileiras.

E, ainda, em se tratando de uma emissora de televisão pública, deve-se indagar qual será o seu regime jurídico. Ficará esta nova empresa pública sujeita ao pagamento de tributos sobre as receitas que auferir? Pagará ICMS, a exemplo do que ocorre com as emissoras de televisão fechada no Brasil? Ou será integralmente financiada pelos cidadãos via tributos, e que, como parte interessada, até agora não foram ouvidos?

Assim, o exemplo que vem da Europa, apesar da existência da BBC e de outras boas televisões públicas, não é o que se alardeia. Pelo contrário, na União Européia, as televisões públicas têm cada vez mais seu âmbito de atuação restringido por serem consideradas dentro do escopo de vedação às ajudas de Estado, ao estarem inseridas em um setor cuja liberalização (telecomunicações) é o norte a ser seguido.

É sob o contexto da visão européia que a discussão sobre a implantação de uma televisão pública no Brasil está sendo tomada. Sem pensar, analisar e refletir, podemos estar tomando um caminho equivocado na contramão da história.

MARCOS ANDRÉ VINHAS CATÃO é professor de direito da Fundação Getulio Vargas.