Título: Sem transparência
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 24/05/2007, O País, p. 4

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou projeto que proíbe o contingenciamento de emendas individuais de parlamentares, medida que parece garantidora da independência do Legislativo, mas que pode transformar o Orçamento da União num verdadeiro monstro, sem unicidade nem objetivos claros. Corremos o risco de ver aprovadas emendas e mais emendas que não têm nada a ver com os projetos prioritários do país.

Com todas essas crises, especialmente a dos sanguessugas, e agora a Operação Navalha, cujo centro é a interferência de empreiteiros, através de parlamentares, para fraudar licitações de obras públicas, geralmente superfaturadas e não raro desnecessárias, ficou demonstrado na prática o que já se intuía: o Orçamento, do jeito que é aprovado, é uma fonte inesgotável de corrupção dos Três Poderes.

A capacidade de cada deputado e senador de apresentar emendas até um limite de R$5 milhões, de aprovação automática sem que passe por nenhum filtro, e de as bancadas apresentarem até 20 projetos, de acordo com o seu tamanho, sem limite de orçamento, provoca a ganância dos empreiteiros e transforma os políticos em seus potenciais agentes, e de todo tipo de interesses de empresas que têm negócios com o governo.

Por outro lado, o poder que tem o Executivo de contingenciar essas verbas dá a ele a capacidade de negociá-las politicamente em troca de votos no Congresso, e a burocratas de todo quilate um poder de fazer andar um processo de liberação de emendas que também se torna alvo de todo tipo de pressão, desde as políticas até as corruptoras.

A corrupção, como se tem visto, tem vários graus, e atinge desde os mais altos escalões da República até o burocrata anônimo dos órgãos governamentais. Se esse movimento para transformar as emendas de parlamentares em impositivas, num Orçamento que é meramente indicativo, vingar, corremos o risco de ter um Orçamento completamente distorcido, obedecendo a interesses pessoais ou corporativos.

O que deveria ser feito é um trabalho profundo para que o Orçamento venha a ser impositivo, mas aprovado num trabalho conjunto entre Legislativo e Executivo, dentro de parâmetros transparentes e objetivos de longo prazo.

A Constituição de 1988 mudou os conceitos de orçamento, introduziu controles externos, exigiu metas, prioridades e resultados. Mas, vinte anos depois, a maneira de fazer isso não foi regulamentada.

Os orçamentos, seja o federal, sejam os estaduais e municipais, continuam sendo feitos à moda antiga, ou melhor, à maneira de cada autoridade.

O Conselho de Gestão Fiscal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, nunca foi regulamentado, e ele deveria ser composto por representantes da sociedade civil capacitados a controlar a feitura e a execução orçamentárias. E também está prevista na LRF a contabilidade de custos, que permitiria quantificar quanto custa cada aluno de uma universidade federal, por exemplo, ou cada doente de um hospital público, mas nada foi feito.

Outra mudança legal necessária é a criação de contratos de gestão em que todos os gestores públicos responsáveis por gastos tenham metas de desempenho. A fiscalização do cumprimento dessas metas ficaria por conta de um tipo de agência reguladora sem poder punitivo, mas com capacidade de apontar eventuais falhas. O governador de Minas, Aécio Neves, começou este ano a utilizar esses mecanismos de avaliação e medição de produtividade no orçamento estadual.

A situação se repete pelo país, a partir de Brasília: a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que teoricamente dá as linhas gerais do Orçamento, e deve ter relação com o Plano Plurianual de Ação (PPA) dos governos, não raro é uma obra de ficção. Há exemplos aos montes de prefeitos que simplesmente repetem a mesma LDO anos seguidos, sem que ninguém note, ou se importe com a farsa.

A LDO do governo federal foi aprovada com grande atraso, pouco tempo antes da aprovação do Orçamento também atrasado, ficando claro que os parlamentares não a examinaram. Além do mais, o Legislativo não pode rejeitar uma LDO, mesmo que esteja irregular. Agora mesmo, no município do Rio de Janeiro, a Câmara de Vereadores tentou compatibilizar a LDO que o prefeito mandou com o PPA, fixar metas e prioridades, e esbarrou na burocracia que permite apenas emendas.

A vereadora tucana Andrea Gouvêa Vieira, que deu o parecer contrário, pergunta: "Como emendar meta e prioridade do Executivo se não temos as informações que só o Executivo possui? Como punir o prefeito que não faz uma LDO (que deveria ser o mais importante dos documentos orçamentários?) de acordo com a lei? Temos que mudar os anexos, as planilhas a serem preenchidas pelo Executivo".

Orçamentos mal elaborados como os nossos já foram identificados por pesquisas internacionais como causa das crises que muitos países vivem. E nós devemos nos incluir nesta estatística, pela falta de controle social dos orçamentos públicos, e de transparência fiscal.

Para evitar que o controle dos gastos públicos, necessário para a estabilidade econômica, seja feito por uma política burra de cortes lineares no Orçamento - que atingem especialmente os investimentos -, como tem sido há mais de dez anos, ou o contingenciamento de verbas, é preciso aumentar a eficiência do gasto público.

A maneira de fazer isso está prevista na lei. É só querer organizar a bagunça. Mas como a bagunça que impera facilita a corrupção, não há indicação de mudanças no horizonte.