Título: Ninguém é de ninguém
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 25/05/2007, O País, p. 4

Em Brasília, "a situação está de vaca não conhecer bezerro", uma imagem muito usada por políticos nordestinos para se referir a momentos como o atual, onde a desconfiança generalizada impede que se tenha uma perspectiva segura do que pode acontecer mesmo a curto prazo. "Não tenho dúvidas de que todos nós estamos sendo grampeados", declarou, alto e bom som, o senador Inácio Arruda, do PCdoB, partido aliado do governo. As versões são as mais diversas; a dúvida é se a Polícia Federal está tentando atingir o governo, ou se o governo está usando a Polícia Federal para atingir os políticos.

Há quem acuse diretamente o ministro da Justiça, Tarso Genro, de manipular as investigações da Polícia Federal com o objetivo de enfraquecer aliados da base do governo e fortalecer, assim, o PT. Há também quem ache que ele não tem o controle da Polícia Federal, que estaria dividida em grupos distintos que brigam pela hegemonia da corporação e pelo aumento salarial de 30% prometido pelo governo federal e que ainda não saiu.

Há também quem informe que o presidente Lula estaria irritadíssimo com seu novo ministro da Justiça, com saudades do criminalista Márcio Thomaz Bastos, que sabia exatamente como se utilizar da Polícia Federal para fortalecer a imagem política do governo sem causar grandes crises. E há quem jure que o presidente Lula reafirma sempre que as investigações da Polícia Federal seguirão, doam a quem doer.

A família Sarney, ainda traumatizada com o episódio da campanha eleitoral de 2002, quando a Polícia Federal inviabilizou a promissora candidatura de Roseana Sarney à Presidência com um flagrante que resultou numa imagem de pilhas de dinheiro que ficou na história política recente, vê sinais semelhantes na ação da Polícia Federal de agora, que resultou na saída do ministro Silas Rondeau das Minas e Energia, uma indicação política conjunta dos senadores José Sarney e Renan Calheiros.

O presidente do Senado, por seu lado, está seriamente desconfiado de que toda essa operação tem por objetivo prejudicá-lo e a Sarney, que teriam uma ligação direta com o presidente Lula que independe de partidos.

O acordo político entre o PMDB e PT na eleição da Câmara, que colocou os peemedebistas que estavam na oposição como figuras importantes na coalizão governista, sairia beneficiado com o enfraquecimento dos líderes do Senado, objetivo que estaria por trás das acusações da Polícia Federal ao ministro indicado por eles.

O interesse seria duplo: o PT estaria de olho no Ministério das Minas e Energia, enquanto o PMDB de Michel Temer estaria interessado em se transformar no interlocutor principal do PMDB junto ao Palácio do Planalto. Embora Sarney e Calheiros tenham mantido a prerrogativa de indicar o substituto de Silas, tiveram que escolher um técnico ligado à ministra Dilma Rousseff, o que demonstra como estão frágeis.

A situação política delicada fez com que ontem, depois da reunião do Conselho Político, a orientação do Planalto tenha sido de retirar as assinaturas dos aliados para o pedido de uma CPI mista da Operação Navalha. No Senado, sem que Renan Calheiros tivesse que ser obrigado a assinar - ele assegurou em público que o faria se faltasse uma assinatura -, os apoios são mais do que suficientes para garantir a convocação.

Na Câmara, faltavam cerca de 15 assinaturas, e o movimento da base aliada era grande no fim da noite. Os políticos estão ao mesmo tempo temerosos e raivosos. Os prefeitos desapareceram de Brasília, ninguém está pressionando por liberação de verbas, ninguém sabe o que pode vir por aí.

Fala-se pelos cantos de uma aparelhagem de última geração de Israel que permite fazer gravações simultâneas de conversas telefônicas, numa rede tecnológica que interliga nomes de pessoas e instituições, abrindo novas investigações à medida que certas palavras-chave surgem em conversas.

Seria um sem-fim de gravações, muitas vezes feitas com autorização judicial a posteriori. O senador Jarbas Vasconcellos, do PMDB não governista, protestou ontem contra os indícios de autoritarismo e de abusos nas investigações, e disse que o próprio presidente da República é "refém" da Polícia Federal.

O líder tucano no Senado, Arthur Virgilio, denunciou que documentos oficiais continham tarjas pretas para encobrir nomes de pessoas citadas, e estranhou que a divulgação de envolvidos em crime esteja sendo feita através de uma filtragem oficial que protegeria alguns dos envolvidos. O ministro do Supremo Gilmar Mendes, que chamou de "canalhice" a divulgação de dados de processos sob sigilo de Justiça, foi o grande homenageado do dia.

A oposição acredita que políticos e pessoas ligadas ao PT estejam tendo um tratamento privilegiado por parte da Polícia Federal. Pairando acima de todas as divergências expostas durante todo o dia, mais uma vez o presidente Lula parece estar acima do bem e do mal, inatingível em sua popularidade e, por isso mesmo, não exposto à retaliação política dos que, sendo de sua base aliada, se sentem traídos.

Mas, por mais popular que seja (ou esteja), não é bom para o presidente Lula brigar com seus aliados, ainda mais tratando-se de uma dupla de senadores do peso de Sarney e Calheiros. Os políticos estão hoje literalmente sem saída, apontados como fontes primárias da corrupção nacional e com um presidente popular e blindado.

Ontem já havia políticos de variadas tendências e partidos com o mesmo discurso: o grosso das obras que a Gautama executa no país são aprovadas pelo governo federal, até mesmo prédios da própria Polícia Federal. As verbas provenientes de emendas parlamentares, individuais ou de bancadas, seriam pequenas diante do financiamento liberado pelo governo federal. A CPI da Operação Navalha, se sair, se realizará em clima de revanche.