Título: Vila Cruzeiro e a retórica da inteligência
Autor: Beltrame, José Mariano
Fonte: O Globo, 25/05/2007, Opinião, p. 7

Aação da polícia na Vila Cruzeiro fez recrudescer certas críticas em torno da política de segurança pública adotada no Rio de Ja neiro. Em 24 dias de operação, 16 pessoas morreram ¿ 13 ligadas ao tráfico, dois moradores e um policial ¿, além dos feridos por estilhaços e balas perdidas. Para fazermos um diagnóstico isento é necessário encararmos a realidade sem desvios, deixarmos de lado a tentação por números de curto prazo, o moralismo ingênuo e até mesmo as dores do conflito.

As maiores queixas em relação ao enfrentamento ¿ na Vila Cruzeiro e nas outras favelas ¿ se referem à brutalidade dos confrontos e à falta de inteligência. A cidade do Rio de Janeiro tem hoje 759 comunidades carentes, 328 delas com movimento do tráfico. A inteligência policial nos informa que mais da metade dos crimes praticados desde a virada do ano ¿ tais como roubo de veículos, homicídios e ataque a alvos civis ¿ foi promovida por bandidos ligados à maior facção criminosa do estado. As ações da Polícia Militar no Complexo do Alemão visam a desarticular a base operacional desse grupo. As apreensões comprovam o que já sabíamos: folhas de papel, com as despesas da facção criminosa no mês de dezembro de 2006, incluem o planejamento e a execução dos atentados ocorridos no final daquele mês. O material lista compra de munição e armamento, pagamento de material de divulgação, ordens para aliados, pagamento de propinas para resgate de cúmplices e de ¿mulas¿ para levar telefones e drogas a presídios. A contabilidade de fevereiro de 2007 registra o dinheiro arrecadado nas localidades sob o seu domínio.

A postura da facção criminosa apresenta características de um planejamento calcado em ações de guerrilha: o fechamento de vias públicas com obstáculos estáticos (muros, trilhos) e móveis (caminhões e carros de passeio), trincheiras e derramamento de óleo. Já foram removidas 150 toneladas de entulho de barricadas. Dessa forma, não muito raro, a chegada ao objetivo, pelo tempo levado para a progressão, faz com que os alvos tenham sido esvaziados.

Sabemos que não há solução simples para o Rio, muito menos uma alternativa ¿mais inteligente¿. Temos ciência do risco que a população civil corre e tentamos minimizá-lo. Mas, como gestores da segurança, nos parece inconcebível assistir passivamente à evolução de bandos armados para a guerra, que empunham metralhadoras antiaéreas, atiram em inocentes para proteger-se e resolvem suas diferenças em plena luz do dia no centro da cidade ¿ como aconteceu no Morro da Mineira há um mês. Afinal, se estamos nesse estágio hoje, onde estaremos no futuro? É imperioso continuar com as operações planejadas, sob pena de estarmos compactuando com os criminosos, ao permitir que eles aumentem seu poderio, acumulem drogas, armas e munições e saiam a qualquer momento de seus redutos inacessíveis para fazer novas vítimas e aterrorizar a população.

Virou lugar-comum criticar a polícia por falta de inteligência nestas ações. Os críticos confundem ¿inteligência¿, no sentido comum do termo, com ¿inteligência policial¿. Usam a palavra, ou a ausência dela, para desqualificar a decisão do confronto, explicar o número de vítimas, ou reclamar da demora de resultados. Que fique claro: inteligência policial nada mais é do que a busca e o cruzamento de informações precisas que possam dar origem a um plano. É saber o máximo e o melhor sobre o inimigo, sua localização, poder de fogo, organização, modo de agir, pontos fortes e pontos fracos. Portanto, inteligência policial não exclui o confronto e nem sempre é sinônimo de prisões silenciosas, embora estas sejam as operações que perseguimos, como a que vimos no Aeroporto Internacional Tom Jobim, ou a de ontem, quando, sem dar um tiro, a polícia desbaratou um bando envolvido em negócios de carros roubados.

Mudar o quadro do Rio exige mudanças estruturais, de longo prazo, que, devido às inúmeras crises desde o início do ano, acabaram distantes dos holofotes. Passos importantes já foram dados, mas isso é assunto para outra oportunidade.

JOSÉ MARIANO BELTRAME é secretário de Segurança do Rio de Janeiro.