Título: O medo venceu
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 26/05/2007, O País, p. 4

Diante do sucesso da política econômica, do uso escancarado do Bolsa Família como instrumento eleitoral e da megacoalizão política que o presidente Lula armou para a sustentação parlamentar de seu segundo mandato, tendo o PMDB como ator central, depois de todos os escândalos de corrupção ocorridos no primeiro mandato, soam quase anacrônicas as críticas que o ex-assessor do Palácio do Planalto Frei Betto faz ao governo do qual participou por dois anos no seu mais recente livro, "Calendário do poder", a ser lançado no início do próximo mês pela Editora Rocco. Ao mesmo tempo, o livro reafirma sua coerência inalterada na maneira de encarar e exercer o poder, e uma visão política de esquerda que ele mesmo considera ter praticamente desaparecido do governo.

Nada mais distante da realidade do que o governo que Frei Betto imaginava ao chegar ao poder junto com o operário metalúrgico que conheceu em 1980 e com quem "cravou" - na expressão do próprio Lula - uma amizade que resistiu até à desilusão provocada por um governo em que, no primeiro mandato, "o medo venceu a esperança".

Escritor prolífico, este é o segundo livro de Frei Betto sobre o período em que esteve no governo. No primeiro, "A mosca azul - Reflexão sobre o poder", como o próprio nome já revela, ele faz uma análise dos impasses do governo Lula e a crise ética que afetou o PT a partir da crise do mensalão, em 2005.

Este é o que ele define como "diário de bordo", onde registra "sentimentos contraditórios, apreciações paradoxais, júbilos e decepções" do período em que ocupou um gabinete no 3º andar do Palácio do Planalto, próximo ao gabinete do presidente da República.

A luta contra a política econômica do então ministro Antonio Palocci, da qual participou até onde os limites de sua função permitiam, está perdida, pois mesmo com a saída dele ela foi mantida, numa demonstração de que, mais do que tudo, pertence ao presidente Lula.

Mas, para Frei Betto, essa não é a questão central. "Ainda que o governo zerasse a dívida pública e a fome, assegurasse a toda a nação alimentação, saúde e educação gratuitas e de qualidade; erradicasse o desemprego e a violência; dotasse cada cidadão e cidadã de uma renda mínima, ainda assim não seria o governo dos meus sonhos. Não é no progresso material que se esgota a minha utopia", afirma no epílogo.

A utopia de Betto é o socialismo, que nasceria do "aprimoramento da democracia participativa". Para ele, é preciso "socializar as decisões políticas e o controle popular sobre as instituições, bem como assegurar o acesso a todos os bens materiais e simbólicos".

Diferentemente do que esperava Betto, "no seu primeiro mandato o governo petista confinou-se no círculo hermético da lógica neoliberal. Inflou a Bolsa Fartura com os recursos destinados à voracidade do capital financeiro, via superávit primário e juros altos, enquanto acatava a focalização social recomendada pelo Banco Mundial em relação aos pobres. Via Bolsa Família, instituiu a rede de distribuição de renda mínima, cujo caráter assistencialista consiste em não oferecer aos beneficiários os meios de se livrarem da dependência do poder público e ter acesso ao emprego e às condições de obtenção da própria renda. A estrutura social do Brasil, desigual e perversa, permanece intocada".

Mas Betto não deixa de ver avanços no primeiro mandato de seu amigo Luiz Inácio. Sempre que envia cartas ao presidente, várias delas reproduzidas no livro, o chama pelo nome, e se assina Carlos Alberto, o que pode parecer um distanciamento entre os dois, mas, ao contrário, é um sinal de aproximação. Um dos orgulhos de Frei Betto é a política externa conduzida pelo chanceler Celso Amorim, que, a certa altura, classifica como "o único ministro de esquerda do governo".

Pois, no seu entusiasmo, Betto vê como sinais de sucesso do primeiro mandato o governo ter conseguido "repudiar a proposta neocolonialista da Alca, defender a soberania de Cuba e da Venezuela". Ele cita também, no plano econômico, vitórias como "emancipar o Brasil do controle do FMI, reduzir a inflação e o preço dos gêneros de primeira necessidade".

Como se os conceitos do FMI ainda não regessem nossa política econômica, e se o controle da inflação e os preços baixos não tivessem nada a ver com a política do Banco Central que tanto combateu.

Como escreveu esses comentários logo depois da vitória do segundo turno de Lula, não se sabe o que Betto está pensando da reaproximação do Brasil com os Estados Unidos especialmente por causa do etanol, tão criticado por seus amigos Fidel Castro e Hugo Chávez.

Frei Betto critica o governo Lula por ter optado "por privilegiar alianças partidárias que, por vezes, incluíram políticos notoriamente corruptos, de práticas antagônicas aos fundamentos do PT. No calor do processo eleitoral, essas alianças não se pautaram por metas estratégicas capazes de delinear o perfil de um novo país. O balaio de votos pesou mais do que a utopia de construir "um outro Brasil possível". Nem parece ter servido de lição a crise ética de 2005, tumor fétido de alianças nefastas que reduziram o contrato programático a um balcão de negócios com moeda suspeita".

Como se vê, Frei Betto refere-se sempre aos primórdios do PT que ajudou a fundar quando faz críticas políticas, como se àquela altura, mesmo antes do mensalão, mas já com o escândalo de Waldomiro Diniz dentro do Palácio do Planalto, ainda existisse algum resquício do partido que se considerava o detentor do monopólio da ética na política.

O livro conta os desacertos da máquina governamental, as intrigas palacianas, as disputas de poder e os desencontros de projetos. O mais emblemático deles é o rumo do programa Fome Zero, engolido pelo Bolsa Família depois que os programas sociais foram unificados e passaram a ser usados politicamente, com a presença do deputado federal petista Patrus Ananias como ministro do Desenvolvimento Social. (Continua amanhã)