Título: Assistencialismo
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 27/05/2007, O País, p. 4

Um dos maiores sucessos do governo Lula é, sem dúvida, o programa Bolsa Família, embora existam discordâncias sobre a maneira de tocá-lo e, sobretudo, sobre o seu alcance na inclusão social. O ex-assessor especial do Palácio do Planalto Frei Betto, um dos principais idealizadores do Fome Zero, que deveria ser o principal programa social do governo Lula e acabou ofuscado pelo Bolsa Família, conta no livro "O calendário do poder", a ser lançado no início do próximo mês, os percalços da sua implantação. Ao mesmo tempo em que cita a "distribuição de renda mínima" e o "direito à alimentação e à nutrição" como pontos positivos do primeiro governo Lula, Frei Betto discorda da maneira como foi implantado o Bolsa Família, especialmente pela falta de reformas estruturais, e pelo fato de o acompanhamento de saúde e freqüência escolar não ser considerado prioritário pelo Ministério do Desenvolvimento Social.

Além disso, os comitês gestores, que controlariam a execução do programa nos municípios para impedir que os políticos os manipulassem, acabaram perdendo a função justamente para os políticos, que passaram a ter no Bolsa Família uma ferramenta eleitoral poderosa. A disputa entre Frei Betto e a equipe do novo ministro Patrus Ananias sobre os comitês é emblemática da divisão que havia dentro do governo naquele momento.

Em carta ao presidente Lula de setembro de 2003, Frei Betto diz que há "duas concepções" em relação à unificação dos programas sociais: "uma centrada na mera transferência de renda, e outra interessada em fazer da transferência de renda instrumento de inclusão social. A primeira pode nos levar ao assistencialismo, tornando a figura do governo um balcão de obtenção de renda fácil." E sugere que Ana Fonseca, uma reconhecida especialista, fosse mantida à frente do programa por representar melhor a segunda opção. Meses depois, Ana Fonseca foi demitida.

Os comitês gestores passaram a ser comitês Fome Zero e ficaram subordinados aos prefeitos, de acordo com a parceria do pacto federativo defendido pelo ministro Patrus Ananias, ex-prefeito. Na carta em que pediu demissão formalmente, em outubro de 2004, Frei Betto, a certa altura, pergunta a Lula: "E quando terminar a transferência de renda? Como o Bolsa Família poderá assegurar a inserção social (e não meras políticas compensatórias, como quer o Banco Mundial) sem as reformas estruturais?"

Antes, em abril, em outra carta, Frei Betto já tocara no assunto: "Se o Bolsa Família não for complementado por reformas estruturais, haverá um desastre. Já pensou no dia em que os benefícios financeiros forem suspensos? Os beneficiários ficarão, além de mais pobres, também revoltados. Mas se houver, de fato, a sinergia da reforma agrária, da saúde, da educação, do saneamento, da cooperativa, do microcrédito, faremos uma revolução pacífica neste país. Por favor, não peça mais paciência à nação."

E adiante: "Ouça a voz de Deus na sua intuição; não se arrisque a repetir o vexame histórico de Lech Walesa, de Daniel Ortega, e de tantos outros que frustraram a esperança de milhões de pessoas de bem." O fantasma de governos de esquerda que falharam perseguia os petistas nos primeiros momentos do governo Lula.

Em uma das muitas discussões reproduzidas no livro, o cientista político Pedro Ribeiro de Oliveira, referindo-se à crise desencadeada pelo escândalo Waldomiro Diniz, fez o seguinte diagnóstico: "Não podemos repetir a fé que tivemos no sandinismo; acreditávamos mesmo vendo as coisas desabarem. Temos que nos abrir a outras mediações".

O secretário particular de Lula, Gilberto Carvalho, lamenta-se: "Até o caso Waldomiro, era um orgulho o governo não ter um caso de corrupção. Foi uma pancada. No entanto, a esquerda mundial cedeu à corrupção: Nicarágua, El Salvador, União Soviética. Waldomiro virou a Geni. Nos ajudou a derrubar o Collor e depois se corrompeu."

No epílogo do livro, Frei Betto diz que "está por ser melhor analisada a relação da esquerda com o poder. Até agora nenhuma experiência merece ser considerada exitosa. O modelo da esquerda tem sido o figurino da direita". E faz uma surpreendente, embora branda e metafórica, crítica ao modelo político cubano, de seu amigo Fidel Castro: "Em Cuba, bloqueada há mais de quatro décadas pela Casa Branca, o monopartidarismo também inibe a oxigenação da esfera política através do debate público e da organização da sociedade civil em movimentos sociais autônomos."

O livro de Frei Betto conta episódios pequenos que mostram bem o poder por dentro. Como a reação de Benedita da Silva, que, no dia em que tinha que deixar o Ministério, se recusou a sair do gabinete, "não queria largar o osso", segundo relato de Frei Betto, que usou o poder que detinha como assessor especial da Presidência em vários episódios que são contados no livro, até mesmo para ser o responsável pela escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal que mal conhecia.

O episódio ilustra bem como são fortuitas, às vezes, as decisões de governo, pelo menos deste governo. Frei Betto estava em uma fila enorme numa agência da Varig para tratar do retorno a São Paulo, depois da posse de Lula, e sentou-se com a senha ao lado de um "cidadão negro que eu nunca vira". Deu-se a pergunta: "Você é o Frei Betto?" Com a confirmação, ele entregou seu cartão: Joaquim Barbosa, jurista, procurador-regional da República, professor de direito no Brasil e nos Estados Unidos. Betto diz que, depois da conversa, levou de Joaquim Barbosa "o cartão e uma boa impressão".

Meses depois, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em uma conversa informal, disse que o presidente Lula queria nomear um negro para o Supremo, e Betto lembrou-se do cidadão da fila. O ministro da Justiça ficou com o cartão e prometeu ouvi-lo. A nomeação de Joaquim Barbosa foi atribuída em Brasília à influência de Frei Betto.