Título: 'O Judiciário tem de dar resposta à sociedade'
Autor: Taves, Rodrigo
Fonte: O Globo, 27/05/2007, O País, p. 8

Presidente da Associação de Magistrados propõe que processos de corrupção tenham prioridade nos tribunais

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Rodrigo Collaço, de 42 anos, veio ao Rio semana passada para um evento de importância histórica para os juízes. Ele recebeu do presidente do Tribunal de Justiça, José Carlos Murta Ribeiro, as chaves de uma sala no prédio do tribunal que tinha sido tomada da AMB pelo ex-presidente do TJ Sérgio Cavalieri, em represália pela posição da entidade contra o nepotismo no Judiciário. "A retomada dessa sala tem importância simbólica para os juízes", diz Collaço. Vencida essa batalha, a AMB está decidida agora a entrar em outra possível polêmica. Vai enviar ao Conselho Nacional de Justiça um ofício propondo que o Judiciário passe a dar prioridade ao julgamento de processos de corrupção, que envolvam desvio de recursos públicos e autoridades com direito a foro privilegiado. "A sociedade tem razão de cobrar, porque realmente não tem havido julgamento em tempo razoável dessas causas", diz Collaço, que recebeu O GLOBO num hotel em Copacabana, antes de pegar um vôo para Florianópolis, sua cidade natal. "Os juízes precisam ser independentes para julgar, mas o Judiciário não precisa ser independente do sentimento do povo".

Legenda da foto: RODRIGO COLLAÇO, presidente da AMB: "Acho que o Judiciário precisa dar um passo à frente e adotar técnicas de gestão que tenham relação com o sentimento da sociedade"

Qual a idéia central do movimento que a AMB vai iniciar?

RODRIGO COLLAÇO: A idéia central é que o Judiciário, como um dos poderes do Estado, deve ter política judiciária para fazer frente às demandas da sociedade. Há uma demanda clara da sociedade, legítima na minha visão, no sentido de que o Judiciário julgue processos que dizem respeito à corrupção. A corrupção é vista como um fenômeno que precisa ser combatido, e o Judiciário pode adotar políticas para julgar esses processos. O momento exige que, além de combater a morosidade processual, o Judiciário dê prioridade de julgamento de processos importantes nas seguintes áreas: combate à corrupção, defesa do patrimônio público e julgamento de autoridades com foro privilegiado. Se o Judiciário estabelecer política de priorizar esses processos, vamos dar uma resposta à sociedade. Vamos procurar o CNJ e pedir que seja criada uma política judiciária no Brasil de combate à corrupção. Precisamos julgar com mais rapidez casos com relação ao patrimônio público.

Hoje, a população reclama que os crimes de colarinho branco nunca são julgados. Por que isso ocorre?

COLLAÇO: A sociedade tem razão, porque realmente não tem havido julgamento em tempo razoável dessas causas. Hoje, como o Judiciário demora para definir se essas pessoas são culpadas ou inocentes, essa discussão acaba na mídia. Leva a uma situação em que as provas do processo acabam sendo usadas para convencer a opinião pública, e não para o Judiciário dizer se as pessoas são culpadas ou inocentes. Chegamos a essa situação porque o Judiciário é acostumado a reagir a isso sem alterar sua postura.

Que mudanças serão necessárias?

COLLAÇO: Se elegermos esses processos de corrupção como prioritários, vamos descobrir outros problemas: a existência do foro privilegiado, a falta de estrutura do STF para instruir processos. A gente sabe que os ministros estão assoberbados e não têm tempo para ouvir testemunhas e coletar provas. Temos de pensar em alterar o regimento interno do STF para permitir a convocação de juízes para coletar provas. No STJ a mesma coisa, não são tribunais preparados para colher provas. Quando estabelecermos isso como prioridade para o Judiciário, vamos estruturar esses tribunais para dar essa resposta e ter condições de julgar os agentes políticos detentores de foro privilegiado. Vamos estabelecer as políticas para superar esses gargalos e obstáculos.

Há algum esforço bem-sucedido no Judiciário brasileiro?

COLLAÇO: Existem experiências positivas. Uma delas é a do Rio Grande do Sul, onde há uma câmara especializada do TJ para julgar prefeitos e vereadores. Não há estado no país que tenha mais prefeitos e vereadores punidos que o Rio Grande do Sul, porque lá houve especialização e os desembargadores têm apoio técnico no tribunal para julgar esses casos.

A AMB vai propor que o RS seja usado como exemplo?

COLLAÇO: Sem dúvida. Esse exemplo vitorioso pode servir para a especialização de varas de primeiro grau em todo o Brasil, em que os juízes tenham a ajuda de peritos e outras pessoas que possam colaborar na análise dessas provas. Nos tribunais de Justiça, podem ser criadas câmaras especializadas. Seguramente, se nós elegermos como prioridade o julgamento desses processos, vamos tomar uma série de medidas que naturalmente vão tornar os Judiciário apto a julgar essas causas.

Para dar essa prioridade, basta uma decisão dos próprios juízes ou é necessário mudar a lei?

COLLAÇO: É uma decisão política. Estamos propondo uma decisão de política judiciária. O CNJ, criado recentemente, é um órgão de planejamento das políticas do Judiciário. Por isso, queremos que o CNJ dê andamento a essa pretensão da AMB, uma pretensão de grupos de juízes interessados em fazer frente a essa imagem da população de que a polícia trabalha bem e no Judiciário as coisas vão mal. Esses grupos nos sugerem que a própria magistratura chame para si a responsabilidade. Achamos que o CNJ tem condição de transformar em prioridade para, com isso, os juízes mesmos darem a resposta, julgando rapidamente esses casos.

A proposta é uma ruptura do modelo atual?

COLLAÇO: Acho que o Judiciário precisa dar um passo à frente e adotar técnicas de gestão que tenham relação com o sentimento da sociedade. Não é que agora vamos condenar todo mundo, não é isso. Quero deixar bem claro: é julgar; absolver ou condenar, mas julgar. Ao contrário do que muitos imaginam, os juízes precisam ser absolutamente independentes para julgar o caso concreto, mas o Judiciário não precisa ser independente do sentimento do povo. Pode e deve dar a resposta que a sociedade cobra.

O senhor acha que a AMB vai encontrar resistência dos próprios juízes?

COLLAÇO: Tenho a impressão que não, porque tenho sentido os juízes incomodados com esse imobilismo do Judiciário em relação às demandas da sociedade. Há grupos claramente interessados em dar uma resposta oportuna. Os juízes hoje fazem cursos de gestão administrativa. É natural que isso deságüe na compreensão de que cabe ao Judiciário estabelecer políticas judiciárias. Se a população identificar como um dos grandes problemas do país a corrupção e a impunidade, cabe ao Poder Judiciário dar uma resposta efetiva à demanda popular. Tenho certeza de que, se houver resistências, nós teremos condições de quebrá-las.

Independentemente da criação das varas, é possível priorizar processos, tirá-los da ordem de chegada?

COLLAÇO: É possível, isso é política judiciária. Defendo que a pauta do Judiciário reflita a da sociedade. Há possibilidade de priorização de casos mais relevantes sociamente.

Como a AMB vê esse momento do país, com os casos de corrupção se sucedendo?

COLLAÇO: Os juízes percebem que esse é um momento especial. Estamos rompendo valores formadores da sociedade brasileira, que sempre estabeleceu que quem tinha poder político, econômico e social não era alvo de investigações, não era alvo de ação nem da polícia nem da Justiça. Isso está na formação do nosso Estado. Felizmente, chegou a hora de acabarmos com os intocáveis. A gente percebe que a elite brasileira nunca se preocupou com a exposição do preso de calção, sem camisa, sendo puxado pelo cabelo para ser exposto à televisão. Agora, com a mudança de foco da polícia, as pessoas começam a se questionar se não deve haver proteção da intimidade. As pessoas passam a ter uma conduta diferente porque estão sendo atingidos segmentos que eram protegidos pela polícia e pelo Judiciário.

Para romper com o modelo atual, é preciso mudar o Código de Processo Penal?

COLLAÇO:Tenho certeza de que vamos chegar à discussão de mudanças no CPP. Nós sabemos que há muita gente vivendo bem em razão dessa morosidade, e que há resistências a essas mudanças. Se elegermos como prioridade o julgamento desses processos, o debate vai aflorar e as pessoas que se beneficiam hoje vão ter de se apresentar para o debate.

Como os processos de crimes financeiros são mais complicados, há o risco de os juízes não aceitarem ir para as varas especializadas?

COLLAÇO: Tenho certeza que não. Temos no Rio as Varas de Falências e Concordatas, que são disputadas. Hoje, a especialização é um desejo do juiz.

Que tipo de processos poderiam ser priorizados?

COLLAÇO: Os que envolvem pessoas com foro privilegiado. Essas pessoas são culpadas ou inocentes? Enquanto não tornarmos esses julgamentos ágeis, o foro privilegiado vai continuar sendo o que tem sido no Brasil: uma busca de impunidade. Vejo também que há preocupação grande com o prejuízo ao patrimônio público que essas operações da PF têm revelado. A última (Operação Navalha) mostra a formação de um esquema para desviar recursos de um programa que o governo ainda nem colocou em funcionamento, o PAC. Esses são os itens principais para enfrentarmos.

É uma campanha em que o público-alvo é mais a própria classe dos juízes?

COLLAÇO: O movimento começará no Judiciário, mas naturalmente vai pôr em discussão aspectos da legislação (como a lei que dá foro privilegiado); a falta de estrutura dos tribunais superiores para produzir provas e instruir processos; e a criação de varas e câmaras especializadas nesse tipo de prática.

Em termos de prazos, qual seria o ganho?

COLLAÇO: Imagino que o CNJ pode determinar seis meses a um ano para, num esforço de mutirão, aumentarmos de forma significativa o julgamento dessas ações. Já teríamos um avanço muito grande. Vou citar só uma pendência: a cada eleição, a lista de candidatos processados mas sem condenação final é imensa. Se avançarmos nisso, não teríamos mais o parlamentar processado, mas o absolvido ou condenado. Em seis meses, daríamos uma resposta positiva e teríamos condição de resolver muitos casos que se arrastam.

Isso só ao priorizar os processos, mesmo sem a criação de varas especializadas?

COLLAÇO: Só num esforço de política judiciária, dentro da realidade atual no Poder.

Mas é possível fazer na estrutura atual?

COLLAÇO: A criação das varas daria um caráter de permanência a essa preocupação do Judiciário. Criando estruturas só para esse tipo de causa, estaremos dando condições para uma política permanente. Isso se incorpora à estrutura e passa a ser uma resposta institucional do Poder. Qualquer país precisa permanentemente buscar combater a corrupção.

Poderia haver até um efeito psicológico nos criminosos?

COLLAÇO: Poderia. Tanto que recentemente foram discutidas leis da mordaça para Judiciário e Ministério Público. Esse segmento hoje enxerga muito mais prejuízo com a notícia, com a exposição dos fatos à opinião pública, do que a própria responsabilização penal. Ele consegue protelar indefinidamente a sentença, mas a divulgação dos fatos, para ele, traz prejuízos.

O senhor atribui a mudança dos juízes ao rejuvenescimento da categoria?

COLLAÇO: A proposta da AMB reflete uma mudança de personalidade. Há grupos de juízes que consideram a cobrança da opinião pública favorável ao Judiciário, por ser uma cobrança por justiça. Há muitos juízes novos, que não foram formados quando as liberdades públicas não vigoravam no país. São juízes que não se limitam a cumprir a lei, que querem exercer sua atividade na plenitude. Os juízes novos foram formados dentro da realidade democrática do país e, por isso, têm a disposição de contribuir para o aprimoramento da nação.

"Felizmente, chegou a hora de acabarmos com os intocáveis no Brasil"

"O Judiciário não precisa ser independente do sentimento do povo"

"Tenho sentido os juízes incomodados com esse imobilismo do Judiciário"

"Enquanto não formos ágeis, o foro privilegiado será uma busca de impunidade"