Título: A capital dos amputados
Autor: Engelbrecht, Daniel
Fonte: O Globo, 27/05/2007, Rio, p. 16
Mau atendimento no SUS aumenta sofrimento de diabéticos.
Em pleno século 21, um batalhão de amputados surge todos os meses no Rio em virtude de complicações provocada por uma doença bem conhecida: a diabetes. Dados obtidos pelo vereador Carlos Eduardo (PSB), presidente da Comissão de Saúde da Câmara, mostram que, somente no ano passado, 1.403 pessoas tiveram partes dos membros inferiores, como pés e pernas, removidos em hospitais públicos ¿ mais de cem pacientes por mês, em média. O número faz do Rio a cidade que mais amputa no país. As condições precárias de atendimento aos diabéticos, que são 7,47% da população do estado, constatadas num estudo publicado pela revista especializada ¿The review of diabetic studies¿, são apontadas como causa da maioria das complicações.
O número de amputações na cidade, registradas pelo Ministério da Saúde, foi considerado alarmante pelo vereador. Das 1.403 pessoas que passaram pelo procedimento no ano passado, 601 tiveram dedos do pé removidos; 69, o pé inteiro; 584, a perna na altura da coxa; e 149, a perna inteira. Os meses com mais registros foram janeiro e fevereiro, com média de seis amputações por dia.
Em todo o estado, foram 2.380 amputações no ano passado, o maior número do Brasil.
¿ Além do drama vivido por quem perde uma perna ou pé, existe o problema da sangria da Previdência Social. Essas pessoas são aposentadas por invalidez e passam a sobreviver às custas do estado ¿ ressalta Carlos Eduardo.
Nos últimos cinco anos, o oficial de Marinha Mercante Wladimir Magalhães, de 51 anos, passou duas vezes pelo sofrimento de ter partes do corpo amputadas. Diabético há 16 anos, ele teve um dedo do pé removido em 2002, e a perna esquerda, abaixo do joelho, em 2005.
¿ Na primeira vez, busquei atendimento no Hospital Souza Aguiar com o dedo gangrenando, mas fiquei três dias numa maca, sem receber visita de médico e fazer curativo. Quando foram ver, era tarde demais ¿ relembra.
A amputação de membros inferiores não é a única complicação proveniente da diabetes. Estima-se que 70% dos doentes que não recebem tratamento adequado desenvolvam também outros males, como cegueira, infarto, insuficiência renal e acidente vascular cerebral (AVC).
Nem exames mais simples são realizados
O dado torna-se especialmente grave quando se considera a qualidade do atendimento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Uma pesquisa realizada por um grupo de especialistas em diabetes, nos anos de 2001 e 2002, publicada ano passado, concluiu que os pacientes enfrentam grandes dificuldades para realizar exames e tratar a doença. Dos 2.230 diabéticos pesquisados em oito cidades, entre elas o Rio, mais da metade sequer realizou, num período de um ano, exames simples, como o de urina e o de fundo de olho.
¿ Isso ocorre porque o sistema não dá condições às unidades de saúde de fazer a avaliação dos pacientes. O exame de hemoglobina, por exemplo, até hoje não foi padronizado no país. Onde trabalho, há seis meses sequer é feito ¿ afirma a vice-presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes e chefe do Setor de Diabetes do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), Marilia de Brito Gomes.
Portadora da doença há mais de 20 anos, a professora Cely Silva de Almeida, de 68 anos, conhece bem as dificuldades para realizar exames e consultas.
¿ Tenho um pedido de exame oftalmológico de 2004 que ainda não consegui fazer. Também estou esperando, desde abril do ano passado, por um ecocardiograma ¿ conta ela, que sofreu um princípio de AVC em setembro e não consegue andar.
Os diabéticos também enfrentam um calvário para conseguir remédios de distribuição gratuita. Alguns hospitais, como o da Lagoa e o Hupe, até criaram laudos padronizados para fornecer aos pacientes, para que eles possam ingressar na Justiça e pleitear os remédios. No ano passado, 2.369 processos sobre fornecimento de medicamentos para diabetes e outras doenças foram propostos no Tribunal de Justiça. Em 2007, foram 856, até março.
Responsável pelo atendimento, a Secretaria municipal de Saúde garantiu que não existe falta de remédios, exceto em casos pontuais, e que os doentes recorrem à Justiça, na maioria das vezes, para obter medicamentos especiais, cuja distribuição não é de competência dos municípios. O órgão disse ainda que, desde 2002, desenvolve o Projeto de Atenção ao Pé Diabético, que visa a reduzir o número de amputações. Ao todo, foram capacitados 700 profissionais de saúde em todas as 111 unidades que prestam atendimento a portadores da doença.