Título: Crise da RCTV mobiliza Venezuela
Autor: Azevedo, Cristina
Fonte: O Globo, 27/05/2007, O Mundo, p. 42

Fim da concessão, que expira à meia-noite de hoje, leva população de novo às ruas.

A meia-noite de hoje, uma queda-de-braço iniciada anos atrás entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e alguns dos principais meios de comunicação do país terá um momento decisivo, que deve determinar uma nova - e mais dura - etapa no confronto político do país: sai do ar a Radio Caracas Televisión, o mais antigo canal privado venezuelano e uma das principais vozes críticas ao governo.

A recusa em renovar a licença da emissora, considerada a medida mais impopular de Chávez até o momento, é vista por analistas como parte de um processo de radicalização do governo e conseguiu mobilizar novamente os venezuelanos, que voltaram a ocupar as ruas com manifestações. Mas enquanto jornalistas e órgãos internacionais vêem na medida uma ameaça à liberdade de expressão, os venezuelanos têm uma razão mais simples para ficar contra ela: a saída do ar de alguns de seus programas favoritos. A emissora transmite seis novelas (algumas são as de maior público no país), nove programas infantis, três telejornais e vários programas de variedades, entre eles "Quem quer ser milionário", com 40% de audiência.

- Sem dúvida, esta é uma situação nova, que não víamos há cinco anos, quando a demissão de gerentes e empregados da PDVSA (a empresa estatal de petróleo) deflagrou uma crise política que culminou com a saída de Chávez do poder - diz ao GLOBO o jornalista e analista político Manuel Malaver, de Caracas, referindo-se às passeatas. - Agora, da mesma forma, se trata da demissão de três mil trabalhadores e do fechamento de um canal de TV. Os protestos podem levar a uma nova crise.

A situação não é simples, tampouco está definida. Meses atrás, Chávez anunciou que não renovaria a concessão da RCTV, que expira à meia-noite de hoje. Sua principal acusação é que a emissora teria apoiado o golpe de 2002, que o afastou por quase 48 horas do poder, durante o qual não teria mostrado manifestações de apoio ao presidente. A direção da emissora nega a acusação e contesta a data da concessão, dizendo que a licença foi automaticamente renovada por 20 anos, em 2002, quando foi necessário se adaptar a uma nova lei de comunicações. Vários recursos foram enviados ao Tribunal Supremo de Justiça, que concordou em analisar pelo menos um deles, mas rejeitou ações para que o canal continuasse no ar enquanto não há uma sentença final.

Protestos e festas marcados para hoje

Nos últimos dias passeatas tomaram as ruas de Caracas, mostrando que a sociedade venezuelana continua polarizada. Novos protestos foram convocados para hoje, ao mesmo tempo em que o governo reforçava a segurança em Caracas e convidava a população a festejar a saída do ar da RCTV e a saudar a nova TV estatal que transmitirá pelo canal 2. Segundo as pesquisas, sete em cada dez venezuelanos são contrários à medida, embora a popularidade do presidente se mantenha em 60%.

- Tem havido protestos, mas eles não têm sido tão maciços como se devia esperar se levarmos em conta que entre 70 e 80% da população, de acordo com todas as pesquisas, rechaçam a medida - diz a jornalista Cristina Marcano, autora da biografia "Hugo Chávez sem uniforme". - Há muita gente desmobilizada na oposição, que acredita que os protestos não servirão para nada. Do outro lado, há muitos que são contra a saída da RCTV, mas não participam dos protestos porque continuam apoiando Chávez e não querem ser vistos como opositores. Nos meios de comunicação, com contadas exceções, há temor de possíveis represálias do governo.

Outros analistas, no entanto, acham que a medida está unindo a oposição. Seria parte de um processo que começou no ano passado, quando o principal candidato opositor, Manuel Rosales, obteve 38% dos votos nas eleições presidenciais. Para Hernán Castillo, professor de pós-graduação de ciências políticas da Universidade Simon Bolívar, em Caracas, o quadro social e político está mudando, e uma prova disso são as manifestações.

- Creio que nas próximas eleições para prefeitos e governadores, em 2008, a oposição vai sair bastante unida - acredita Castillo. - Mas há um problema que não podemos esquecer: a possibilidade de o presidente implantar o Partido Único Socialista. Mesmo aliados tradicionais do governo têm diferenças e custariam a aceitar se dissolver e incorporar-se a ele.

Castillo e alguns outros analistas vêem o fim da concessão como uma radicalização crescente do governo. Parlamento Europeu, Repórteres sem Fronteiras, Anistia Internacional e Sociedade Interamericana de Imprensa são algumas das organizações internacionais que manifestaram seu temor quanto à deterioração da liberdade de expressão no país. O governo afirma que não há uma ameaça à liberdade de imprensa porque outros veículos continuam a funcionar, inclusive os jornais. Mas, sem dúvida, o fechamento da RCTV, que funciona há 53 anos, representa um duro golpe aos críticos ao governo: além de ter a maior audiência, ela tem o maior alcance em território venezuelano.

- Outras emissoras já moderaram suas críticas, e das quatro TVs de oposição que existiam há três anos, só restaram duas, contando com a RCTV. Agora ficará apenas uma - comenta Malaver.

Sem a RCTV restará a Globovisión como canal aberto à oposição, mas a emissora não possui cobertura nacional, lembram analistas. E mesmo que a RCTV continue transmitindo a cabo ou em UHF, seu público seria mais restrito, seja pela condição financeira, já que muitos não poderiam pagar pelo serviço, ou pelo alcance, mais limitado. De qualquer forma, esta é uma medida impopular, que pela primeira vez afetou uma parcela da população que tradicionalmente apóia Chávez e que poderia trazer custos políticos para o presidente:

- Isso teremos que ver com o tempo, mas de imediato dá uma idéia de sua tendência autoritária e sua intolerância à crítica - diz Cristina.