Título: Coisas da política
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 29/05/2007, O País, p. 4

Transformando uma insinuação de corrupção em questão familiar íntima que não deveria ter sido levantada pela imprensa, o senador Renan Calheiros tentou se passar por vítima de uma campanha política ontem, no seu discurso de defesa no Senado. Levando sua mulher ao plenário, e lhe pedindo desculpas públicas três anos depois do nascimento de sua filha com a jornalista Mônica Veloso, Calheiros fez o que a opinião pública americana valoriza muito: pareceu sincero e verdadeiro, expiando as culpas em público, como fez, por exemplo, o ex-presidente Bill Clinton ao lado da mulher Hillary, depois de meses de crise por causa de seu caso com outra Mônica, a estagiária Monica Lewinsky.

O presidente do Senado explorou a tradição brasileira, de não misturar vida pessoal com a política. A última vez em que isso aconteceu, Renan fazia parte do núcleo de assessores mais próximos do então candidato a presidente Fernando Collor, alagoano como ele. Como dirigente da campanha de Collor, foi um dos responsáveis pelo uso do depoimento de uma ex-companheira do então líder sindical Lula para acusá-lo, na propaganda de TV, de ter tentado fazê-la abortar.

Lurian, nascida desse relacionamento, apareceu no programa do PT ao lado do pai, mas a acusação fez um estrago eleitoral imediato para Lula. A longo prazo, porém, quem ficou mesmo marcado foi Collor, por ter ultrapassado os limites éticos, e praticado uma ignomínia. A campanha agressiva de Collor acabou levando-o à Presidência, mas o uso de uma questão pessoal foi repudiado por todos e deixou marcas indeléveis na carreira política de Collor e seus assessores.

Por essas artimanhas da política, o hoje senador Fernando Collor estava sentado ontem na primeira fila do plenário, e quem está às voltas com questões pessoais, repudiando o uso dessas "ignomínias" com fins políticos, é o mesmo Renan Calheiros, atual presidente do Senado e um dos mais próximos sustentáculos parlamentares do antigo adversário, o presidente Lula.

A estratégia de Renan foi bem montada até o fim do depoimento, e mesmo ter evitado discursos de solidariedade foi uma cautela premeditada. O líder do governo, Romero Jucá, pediu imediatamente que a sessão fosse suspensa, evitando o risco de que algum senador, mesmo no intuito de solidarizar-se, levantasse pontos que restam polêmicos.

Em nenhum momento, por exemplo, Renan se referiu aos R$16.500 que a "Veja" informa que ele pagava à jornalista através do lobista da Mendes Júnior, Cláudio Gontijo. Apresentando provas de que pagava o aluguel do apartamento e descontava de seu contracheque a quantia de R$3 mil como pensão alimentícia, Calheiros tentou mostrar que era ele quem pagava as despesas.

Se não houver como provar que a soma era maior, e o restante o funcionário da empreiteira pagava, como afirmou ao "Jornal Nacional" o advogado de Mônica, ficará no ar uma disputa de versões que será sempre favorável ao presidente do Senado no campo político, mas não necessariamente na opinião pública. A situação de Renan se complicará um pouco se a mãe de seu filho mostrar depósitos regulares dessa quantia na sua conta. Mesmo assim, não haverá como provar que esse dinheiro era de Renan. A única brecha no esquema traçado pela defesa do presidente do Senado é sua declaração, e a de Gontijo, à própria "Veja", e de Renan ao "Jornal Nacional" de sábado, de que o dinheiro era dele, Renan, que, por motivo de discrição, pedia ao amigo que fosse o intermediário na transação. Nenhum dos dois negou a quantia de R$16.500.

Manter a discrição é uma desculpa esfarrapada, pois hoje a tecnologia permite que se faça uma transferência bancária na maior discrição possível. Ontem, na versão oficial de Renan, seu amigo Gontijo aparece apenas como um intermediário nas negociações, não na entrega do dinheiro.

Cabe à Comissão de Ética do Senado esclarecer esses buracos na versão oficial, mas o seu presidente, senador Romeu Tuma, já antecipou sua opinião pessoal de que está tudo esclarecido. E a fila de senadores de todos os partidos que se formou para cumprimentar o presidente do Senado indica que dificilmente haverá ânimo político para bombardear Renan. A não ser que novos fatos surjam para desmontar a versão, que satisfez os políticos, mas dificilmente satisfará a opinião pública.

Os "clandestinos"

A visita do Papa ao Brasil, no início de maio, teve um episódio inusitado que foi superado pela discrição e criatividade do governo brasileiro. Quando a comitiva chegou a São Paulo, proveniente de Roma, verificou-se que dois membros viajaram simplesmente sem passaporte: nada menos que seus principais integrantes, o próprio Papa e o secretário de Estado da Santa Sé.

Diplomatas brasileiros estranham que o Vaticano tenha cometido falha tão primária de logística, e lembram que qualquer chefe de Estado recebe todas as regalias, como, por exemplo, a dispensa de visto, mas não é liberado para entrar em qualquer país sem uma identificação oficial.

O caso do secretário de Estado seria mais inexplicável ainda, pois ele é um funcionário de um governo estrangeiro como qualquer outro, e em nenhuma hipótese estaria liberado de apresentar seu passaporte diplomático.

O problema chegou ao Palácio do Planalto, e a solução foi deixá-los entrar em solo brasileiro e multar a empresa aérea Alitalia. Oficialmente, a Alitalia foi multada pela Polícia Federal por ter trazido dois clandestinos a bordo: um alemão, Joseph Ratzinger, e outro italiano, Tarcisio Bertone. E a Nunciatura Apostólica ainda protestou formalmente junto ao Itamaraty pela multa.