Título: Testar a democracia
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 29/05/2007, Economia, p. 20
Hugo Chávez, que antes só vinha incomodando seus inimigos, pode ter agora dado um passo que atinge seus aliados. Não os aliados políticos, mas a massa venezuelana que o vem apoiando desde que chegou ao poder. Personagem complexo, o presidente da Venezuela começa, na visão de especialistas em América Latina, a transitar por uma linha tênue que separa o governo autoritário do democrático.
Hugo Chávez vai dando seus passos, um de cada vez, mas, a cada novo movimento, mais se afasta de um governo democrático de fato. Neste domingo, chegou a um de seus pontos máximos ao não renovar a concessão de um canal de TV. E não um canal qualquer, mas a mais antiga emissora privada do país e com maior capacidade de transmissão, que atinge quase todo o território venezuelano. Chávez acusa o canal de ter participado do golpe contra ele em 2002 - acusação, aliás, verdadeira, mas que não justifica tal medida censora. Com isso, apenas um canal de oposição permanece no ar, porém seu sinal só alcança Caracas.
- Hugo Chávez é um fenômeno complexo, com poder apoiado no petróleo e no próprio vigor da sua liderança, um estrategista, que sabe recuar quando erra, mas, desta vez, ele pode ter cometido um grande erro tático ao tirar do ar um canal popular, com programas de grande audiência - avalia o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EPGE/FGV.
Marcelo Coutinho, coordenador do OPSA, do Iuperj, diz que Chávez, legalmente, podia não renovar a concessão, mas ele reconhece a atitude política na decisão:
- Isso fortalece a máquina política de Chávez, que já tem ao seu lado o Parlamento, o Judiciário e as Forças Armadas. Os meios de comunicação eram um dos seus problemas, pois ali havia ilhas de resistência. Agora se estabeleceu uma linha hegemônica.
Na visão de Coutinho, o presidente da Venezuela vem testando os limites da democracia:
- Se ele realmente decidir votar o fim do limite da reeleição ad eternum, estará ferindo o princípio democrático de alternância do poder; fere gravemente a democracia - afirma.
- Hoje a Venezuela já é uma semidemocracia - acredita Octavio Amorim.
Os dois concordam que não há espaço hoje, na América do Sul e no Mercosul, para um país com regime autoritário. As próprias regras do Mercado Comum dizem que só podem participar democracias.
Fato é que Hugo Chávez, seja por sua retórica, seja pelo poder que o petróleo lhe deu, tem hoje mais cartaz que merece na região. Também é verdade que a Venezuela conseguiu, apesar do seu tamanho, passar a pautar, junto com o Brasil, a agenda de relações internacionais da área. Contudo, na hora de sair do discurso para a prática, o país continua dependente: do apoio do Brasil ou do consumo de petróleo dos Estados Unidos. A curto e médio prazo, Chávez faz muito barulho e dá dor de cabeça. A torcida é para que o show - que já foi longe demais - pare por aqui. Só assim será possível levar adiante a idéia de integração.