Título: Modos e motivos
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 30/05/2007, Economia, p. 22
O que está em discussão não é a "mais íntima privacidade" do presidente do Senado, mas a suspeita de que algumas contas dele eram pagas pelo funcionário de uma empreiteira. O assunto não é de ordem pessoal, é de interesse público. O senador Renan Calheiros misturou as coisas de propósito, e os senadores fingiram acreditar.
O senador sustenta que o funcionário da Mendes Júnior era apenas o entregador do dinheiro. Se for verdade, é o primeiro caso de inocente fazendo um enorme esforço para parecer culpado. O que pertence ao senador é a natureza da sua relação com a mulher com a qual teve uma filha, mas não foi isso que levou o assunto para a imprensa. O que intriga é a natureza da relação entre o senador e a empreiteira. Se o dinheiro era mesmo dele, como diz, e ele queria fazer o pagamento por um intermediário, o melhor seria fazê-lo através de um advogado e contra recibo, e não num envelope apanhado no escritório da Mendes Júnior.
Na hora de se defender, Renan Calheiros falou em ataque à instituição que preside, e a senadora Ideli Salvatti, do PT, tratou tudo como uma ofensa ao Senado, "este espaço democrático que conquistamos com luta". Não é o Senado ou a democracia que estão em cheque, mas as relações de um senador com uma empreiteira.
Há muita confusão sendo feita de propósito. A Polícia Federal executar prisões temporárias de suspeitos, com ordem judicial, não é ameaça de Estado policial e, sim, uma etapa da investigação. A soltura não é prova de inocência, porque, como o nome diz, a prisão é temporária.
A Polícia Federal foi atacada por advogados, entidades de classe, políticos, ministros de tribunais superiores, enquanto jornais, redes de televisão e rádios divulgavam os mais asquerosos diálogos captados pelos policiais em suas investigações. O sentimento de indignação foi mobilizado não contra quem assalta o dinheiro público, mas contra quem tenta combater o assalto.
O Estado de Direito pressupõe o respeito aos direitos e garantias individuais de todos, inclusive de suspeitos. Mas, vejam só: a PF está investigando crimes; para isso, utiliza recurso internacionalmente usado da escuta telefônica com autorização judicial. Após a coleta de indícios suficientemente fortes, tem que dar um passo adiante e, por isso, deflagra a operação principal de busca e apreensão de mais provas. O Estado de Direito determina que a prisão temporária ocorra apenas se for precedida de autorização judicial e tenha curta duração. É o tempo apenas para que se recolha o material e se tomem os depoimentos. Tudo isso é para evitar destruição de provas, conluio, combinação de versões entre os investigados.
Na Operação Navalha, após os depoimentos tomados pela ministra Eliana Calmon, do STJ, a maioria foi solta. Onde está o Estado policial? O ex-ministro da Justiça Paulo Brossard afirmou que o que acontece agora é pior que na ditadura. Ora, ministro! Qualquer pessoa que tenha vivido, por um minuto que seja, uma prisão da Polícia Federal na ditadura sabe que não há paralelo possível entre os dois tempos. São outros os métodos, os modos e os motivos da ação policial. Como diz a juventude: fala sério!
Muita gente levanta dúvidas sobre se há exageros na ação policial. Há corrupção até na própria PF. Isso é muito sério e tem que ser apurado, mas não invalida o trabalho da Polícia Federal. O que é estranho é que não se forma o mesmo coro de condenação contra os métodos policiais nas áreas pobres. Os sem-nome, os sem-ligações-com-empreiteiras têm seus direitos individuais desrespeitados cotidianamente pelas polícias, mas isso não é apresentado como ameaça à ordem democrática.
É estranha a naturalidade com que se aceita a confusão entre o público e o privado. O cidadão Jaques Wagner pode levar a cidadã Dilma Rousseff para passear no barco de quem quiser. Mas se ele é um governador e ela, ministra-chefe da Casa Civil, é indispensável a informação sobre a propriedade do barco. Não é um detalhe para ser esquecido por causa do sol, da cervejinha e do calor. Parece um pecadilho no mar de corrupção que se alastra pelo país, mas é dessa imprecisão de limites que se aproveitam os aproveitadores. Um político não pode pegar um avião, por mais terminal que seja a hora, sem se perguntar quem paga seu fretamento. O presidente do Senado não pode aceitar que suas contas pessoais sejam pagas por um amigo - ou através de um amigo - se ele é, ao mesmo tempo, funcionário de uma empreiteira com contratos com o setor público.
No Brasil, escândalo virou rotina. No último, um detalhe espanta: tudo é recente. Não é roubo velho. Eles tramavam contra os cofres públicos outro dia mesmo. Os outros escândalos deveriam, ao menos, provocar nos personagens atingidos pela Operação Navalha o temor de serem apanhados. Mas, pelo que se vê nas gravações, são pessoas tranqüilas e seguras. Tome-se a diretora da Gautama Maria de Fátima Palmeira. Ela entrou no Ministério de Minas e Energia com um envelope de dinheiro, passou pela segurança, tomou o elevador privativo e foi a uma das salas do gabinete do ministro no seu serviço expresso de corrupção delivery. Tudo com o maior sangue-frio, como se este não fosse o país no qual dinheiro sujo foi encontrado até em cuecas. Ou eles achavam que tinham costas quentes, ou estavam se lixando para o que desse e viesse.