Título: Ou bagres ou energia
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Globo, 31/05/2007, Opinião, p. 7

Vamos supor que se demonstre que a construção das hidrelétricas do Rio Madeira vai matar os seus belos bagres. Qual a alternativa correta, sacrificar os bagres ou sacrificar a energia a ser gerada pelas usinas?

Ninguém gosta de colocar a questão dessa maneira. Todos evitam uma resposta direta, embora não seja difícil verificar que há um lado pró-bagres e outro pró-usinas. Mas como as partes não assumem claramente suas posições, o debate não termina.

O lado dos ambientalistas, digamos, não quer assumir que se pode condenar uma hidrelétrica crucial ao desenvolvimento do país por causa de alguns bagres. O outro lado, dos desenvolvimentistas, digamos, também não quer assumir que a necessidade de energia pode justificar a morte de algumas espécies.

Na conversa, os dois lados parecem dizer a mesma coisa, mas a ênfase e a ordem da frase denunciam o verdadeiro sentido.

Diz o ambientalista: ninguém pode ser contra o desenvolvimento, mas é preciso que seja com respeito ao meio ambiente.

Diz o outro: é claro que se deve preservar o meio ambiente, mas o país precisa de energia para crescer e gerar empregos.

Por isso a simplificação aqui proposta: o.k., precisa combinar tudo, mas, no final das contas, como ficamos, com os bagres ou com as usinas?

Parece forçada, mas o objetivo é mostrar, de um lado, que a preservação do meio ambiente é, sim, uma dupla restrição ao crescimento: física, porque impede muitas obras, e econômica, porque encarece outras.

Assim como não há almoço grátis, também não há bagre grátis. A preservação tem um custo que precisa ser explicitado para que a decisão seja tomada com ampla perspectiva. Por exemplo: a falta de uma estrada ou de um porto encarece os custos de transporte, inviabiliza determinadas atividades, corta a renda de uma região, elimina empregos. Isso tem um preço que precisa ser medido para que se possa comparar com o que vai ser preservado. Ou seja, qual o preço de cada bagre preservado no Madeira, caso as usinas não sejam construídas?

Do outro lado, os desenvolvimentistas precisam admitir que toda atividade econômica ataca o meio ambiente. Não podem dizer: ora, pessoal, os bagres saberão como subir o rio, a gente coloca umas calhas e tudo bem. É preciso, sempre, calcular o custo ambiental e mostrar o preço que se está empurrando para as gerações futuras.

Nenhum país se desenvolveu sem atacar o meio ambiente. A Europa matou seus rios. Tâmisa, Sena, Danúbio tornaram-se imensos depósitos de lixo. Depois foram recuperados e hoje estão sob controle de regras rígidas. Mas se essas regras fossem aplicadas lá na partida, não existiria a rica sociedade européia de hoje.

Do mesmo modo, como já lembraram diversos analistas, a agricultura atual não existiria se, ao tempo em que foi implantada, vigorassem as regras e o sistema de controle dos danos ambientais de hoje.

Não é preciso mostrar o peso do agronegócio brasileiro. Os preços de alimentos caíram de modo significativo, o que aumentou o bem-estar e a saúde das populações mais pobres. Além disso, no nível macroeconômico, o agronegócio gera emprego, renda e dólares, que permitiram pagar a dívida externa, que leva à queda de juros etc...

Mas desmatou, destruiu um monte de coisas, matou espécies pelo país afora. E aí, não deveria ter sido feito?

A resposta é que deveria ter sido feito com mais cuidado. Óbvio, e por isso mesmo não explica nada. O ponto é o seguinte: com as regras ambientais de hoje, se integralmente respeitadas, não teríamos o agronegócio de hoje.

Na medida em que não se esclarece o debate, nem se assumem todas as consequências, a situação fica assim: os empreendimentos legais paralisados por falta de decisão, circunstância agravada por uma legislação que induz a sucessivos adiamentos; e os empreendimentos ilegais - inclusive o desmatamento da Amazônia - em pleno progresso porque o governo não consegue fiscalizar adequadamente.

Uma conspiração para travar o país não faria melhor.

Os países emergentes já partem de uma desvantagem: precisam crescer no momento em que já houve muita destruição. Se as questões não foram expostas bem claramente, não haverá como tomar as decisões corretas.

Em tempo: o colunista não fica no muro. Se a escolha for inexorável - ou bagres ou usinas - fica com as usinas, determinando-se que as construtoras teriam que criar os bagres (ou similares) em outros tanques.

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. E-mail: sardenberg@cbn.com.br