Título: Corrupção, voto e Orçamento
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Globo, 03/06/2007, O País, p. 14

É responsabilidade de todos restringir as condições que favorecem a transgressão.

As páginas políticas dos jornais voltaram a ser páginas policiais. O ramerrão do cotidiano está a tal ponto insuportável que a polícia, mesmo quando exorbita, aparece como heroína, e os acusados, por inconsistentes que sejam os indícios, são percebidos como vilões. O sentimento de impunidade é tanto que a repressão, mesmo arbitrária, traz a esperança de que afinal se coíbam os abusos. Assim como as fotos das pontes inacabadas são a metáfora do desperdício e da corrupção, as algemas colocadas indiscriminadamente passam a simbolizar a moralidade. Já que não vige a Lei, que venha a repressão!

Essa reação popular, embora compreensível, pode fomentar um caldo de cultura que mine a democracia. Democracia que não respeita nem cumpre a Lei é planta frágil que desaba a qualquer vendaval. Hoje lamentamos, com bons motivos, que na Venezuela fechem-se canais de TV. Mas nos esquecemos que para se chegar a um governo desse tipo, com popularidade e desdenhoso da democracia, houve no passado governos despreocupados em ver que a democracia em suas mãos se tornara ineficiente e corrupta, gerando no povo a ânsia de vingança e de resultados para seus bolsos.

De pouco vale, entretanto, assistirmos ao espetáculo e queixarmo-nos dele. É preciso agir. A responsabilidade maior para tirar-nos desse lamaçal é do Executivo, que deveria comandar uma ação enérgica de reforma política. Na falta desse comando, as lideranças políticas e as da sociedade, ao invés de amesquinharem-se no dia-a-dia de compromissos ao tapar o sol com a peneira, poderiam pressionar em duas direções, ambas coibidoras dos abusos e da corrupção.

Primeiro: a reforma do sistema eleitoral se impõe. Apenas relembro argumentos conhecidos. No atual sistema de voto, a distância entre eleitores e eleitos é abismal. As eleições são caras, e não há acompanhamento do desempenho parlamentar pelo eleitorado. O voto distrital diminui o número de candidatos em cada circunscrição, barateia as eleições, facilitando assim o financiamento público e permite que o eleitor se recorde em que deputado votou. Pode, dessa forma, acompanhar o desempenho do parlamentar, penalizando-o, se for o caso, na eleição subseqüente.

A objeção de que o voto distrital distorce a vontade das minorias ideológicas tem peso decrescente, como argumento, dada a urbanização e a formação de uma opinião pública mais diferenciada, que exigirá em alguns distritos a apresentação de candidatos ideologicamente comprometidos e dará a vitória noutros distritos a candidatos oriundos de partidos ligados a causas específicas, como os Verdes. Se, contudo, o voto distrital puro parecer inaceitável à maioria, caminhemos para o distrital misto. Ou ainda para a subdivisão dos estados mais populosos em distritos, com quatro, seis, no máximo oito deputados, mantendo o voto proporcional, mas diminuindo em alguma medida a distância entre representantes e representados. Mesmo as listas fechadas de partido, que eu acho inconvenientes, quebram a promiscuidade atual e permitem responsabilizar diretamente as direções partidárias pelos desatinos eventuais.

Segundo: é preciso modificar a forma de elaboração do Orçamento da União, peça básica de controle democrático do dinheiro público. Não nos esqueçamos do ditado: "No taxation without representation". Noutras palavras, não pode haver criação ou aumento de impostos senão por decisão expressa dos representantes eleitos dos contribuintes. Da mesma forma, o uso de recursos públicos sem transparência e sem aceitação clara desses mesmos representantes é uma distorção inaceitável. Nosso Orçamento é obscuro, sujeito à troca de favores e interesses em uma interação às escondidas entre a burocracia federal, os membros da Comissão de Orçamento e os interessados diretos nos gastos. Esse processo gera a podridão dos mensaleiros, a promiscuidade entre empreiteiras (e não só elas, mas toda sorte de interesse particularista) parlamentares e funcionários, e torna a corrupção mais do que endêmica, sistêmica.

Isso é assim há muito tempo, mas se acentuou e tomou características novas no atual governo, como o encorajamento dos mensaleiros pelas lideranças oficiais. No passado, as crises financeiras eram tão prementes e a escassez de recursos de tal monta que o governo federal tinha que "contingenciar" as verbas orçamentárias e as ia liberando a conta-gotas. O que mudou? Mudou que hoje os recursos são mais abundantes e a discricionariedade partidária no momento das liberações das verbas aumentou, levando muitos parlamentares a buscar o aconchego das maiorias governamentais. A essência da distorção é a mesma: o que está escrito e aprovado no Orçamento só vale se o Executivo concordar em liberar. Conseqüentemente, quem tiver força junto ao governo será um "pistolão" cobiçado pelos fazedores de obras e de negócios. Mas a gravidade da situação a que se chegou é muito maior.

Nas condições financeiras atuais é possível terminar com o contingenciamento das verbas e, em contrapartida, acabar com a faculdade de cada parlamentar apresentar suas emendas paroquiais. Deve-se acabar também com as "emendas de bancada", pois elas se tornaram uma ficção: fazem-se "emendas guarda-chuva", que na prática abrigam várias emendas individuais. Como, por outro lado, em uma democracia, não se deve dar ao Executivo a prerrogativa de ser o único a definir o que fazer com o dinheiro do povo, cabe ao Congresso estabelecer as prioridades e aprovar os projetos estruturantes. Isso, em cada conjuntura, para as várias áreas em que se divide o Orçamento: pessoal, gastos correntes, educação, saúde, reforma agrária, infra-estrutura e o que mais seja. A discussão passará a ser sobre as políticas para o país, libertando os parlamentares da função de despachantes de luxo, devolvendo-lhes a grandeza de sua missão como verdadeiros representantes do povo e dos interesses da nação.

Essas medidas não terminarão, por certo, com a corrupção, que é um desvio de conduta, de responsabilidade moral de quem o comete e não há sistema eleitoral ou prática orçamentária que o impeça. Mas é responsabilidade de todos, principalmente dos que detêm as rédeas do poder, restringir as condições que favorecem a transgressão, sob pena de leniência com o crime.