Título: Bastidores de uma guerra secreta
Autor: Valente, Leonardo
Fonte: O Globo, 10/06/2007, O Mundo, p. 39

Viúva de ex-espião russo envenenado diz temer ser `mais uma vítima de Moscou¿.

Vinte e cinco de outubro de 2000. O biólogo e ativista político Alex Goldfarb recebe um telefonema de seu amigo, o empresário russo Boris Berezovski. O tema era Alexander Litvinenko, o Sacha, ex-agente da FSB (a antiga KGB) que, anos antes, ficara famoso ao afirmar em uma entrevista, cercado de agentes mascarados, que alguns de seus ex-colegas, chefiados na época pelo desconhecido Vladimir Putin, planejavam assassinar Berezovski. Pouco depois de Putin chegar ao Kremlin, Sacha, ameaçado, fugiu para a Turquia com a mulher e o filho, e precisava de ajuda. Goldfarb, então, seguiu para aquele país para ajudar e, numa seqüência de eventos digna de filme, conseguiu levá-lo com a mulher e o filho para a Grã-Bretanha, onde pediram asilo. Seis anos depois, Sacha foi envenenado por uma substância radioativa rara, o polônio-210, e em meio a sua agonia acusou Putin de ser o mandante do crime. A viúva Marina Litvinenko, que viveu todo o drama ao lado do marido, acaba de lançar um livro em co-autoria com Goldfarb (¿Morte de um dissidente¿, da Companhia da Letras), em que conta em detalhes os bastidores dessa história digna da Guerra Fria. Em entrevista, ela diz que ainda tem medo de cair nas mãos dos agentes de Putin.

Leonardo Valente

A principal tese do livro ¿Morte de um dissidente¿ é a de que Alexander Litvinenko foi morto por agentes russos e que o motivo foi a rivalidade entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o empresário e ex-político Boris Berezovsky. A senhora está certa de que essa é a verdade?

MARINA LITVINENKO: Sim. Existem várias evidências que mostram isso. Nossa história e os acontecimentos descritos no livro já seriam suficientes para apontarmos os agentes secretos russos como os responsáveis pela morte de Sasha (Litvinenko). E as circunstâncias do crime não deixam muita margem para dúvidas. A substância radioativa que o matou, o polônio-210, é rara e muito perigosa. Segundo especialistas, teve de ser processada em uma unidade especializada e transferida sem risco e discretamente para Londres, o que demanda uma operação extremamente complexa, feita com orientação altamente qualificada. Isso só poderia ter sido feito pelo alto escalão russo. Não é tarefa para qualquer um ou qualquer grupo. As evidências são muito fortes.

Putin nega o envolvimento com o crime e diz que Litvinenko tinha fortes ligações com o empresário Boris Berezovsky, a quem acusa de corrupção e de uma série de outras atividades ilegais. O que a senhora tem a dizer sobre isso?

MARINA: Ninguém nunca encontrou provas de atividades ilegais dele (Berezovsky). E se essas provas existissem, a Rússia certamente já teria encontrado. Isso me faz crer que ele é inocente de todas as acusações. Além disso, sou muito grata por todo o apoio que deu desde o início, desde o tempo em que fugimos da Rússia por causa das ameaças. Boris foi uma pessoa fundamental para a nossa entrada na Inglaterra. Não havia qualquer tipo de relacionamento ilegal entre Sasha e ele. Mas Putin considerou essa aproximação uma alta traição, e nunca perdoou os dois por isso.

A senhora quer dizer que Putin está diretamente envolvido no assassinato?

MARINA: Putin não precisa se envolver diretamente num crime. Existe muita gente na Rússia capaz de fazer isso muito bem. O que quero é que tudo fique provado, nenhuma dúvida permaneça e que seja feita a justiça. Para isso, acredito no trabalho das autoridades britânicas e da comunidade internacional.

A senhora já disse em outras ocasiões que esse assassinato era um fato que poderia provocar instabilidade internacional. Por quê?

MARINA: Sasha foi a primeira vítima fatal no mundo de um ataque nuclear terrorista. E esse foi um ataque que fez mais vítimas, cidadãos britânicos, atingidos em território britânico. Todo mundo sabe que ele morreu por causa da radiação, mas poucos se dão conta de que várias outras pessoas foram contaminadas e vivem hoje em tratamento, com sérios problemas de saúde. Esses são fatos mais do que suficientes para provocar um grande problema diplomático entre a União Européia e a Rússia, se as autoridades comprovarem as responsabilidades. Felizmente estou com saúde, mas nesses últimos meses pensei muito naquelas vítimas inocentes que ainda sofrem. É muito duro para elas e para mim também.

Na sua opinião, a Rússia de hoje está mais próxima de uma democracia ou de um regime autoritário?

MARINA: A Rússia vive perigosamente uma tentativa de se silenciar a liberdade de expressão, de se calar os opositores. Isso não é compatível com um regime democrático verdadeiro. A antiga KGB (serviço secreto russo que hoje se chama FSB) está atuando como nos tempos da União Soviética. A morte de Sasha é um exemplo disso.

Depois de tanto sofrimento, o que a senhora sente hoje?

MARINA: Sofri e ainda sofro muito com tudo o que aconteceu. Tenho traumas do passado e medos em relação ao futuro, meu e do meu filho. Mas ao mesmo tempo respiro aliviada por estar na Inglaterra. Sinto que aqui tenho esperanças de seguir em frente. Mas é muito duro. Algumas pessoas até hoje pensam duas vezes na hora de tocar em mim. Ficam imaginando se estou ou não contaminada. Também é duro ouvir gente se questionando se é seguro ficar perto de mim, por que supostamente eu seria uma pessoa marcada.

Marcada ou não, o livro põe a senhora em uma situação delicada com o governo russo. A motivação para escrever essa obra foi maior que o medo de uma retaliação?

MARINA: A motivação e o medo são igualmente grandes. Tenho muito medo de ser uma vítima de Moscou, temo pelo que pode acontecer comigo, apesar de achar que vivo agora de forma mais segura, com proteção da polícia britânica. Mas, todo dia quando acordo, olho para mim mesma e verifico se está tudo ok. Se não há feridas ou qualquer outro sinal de problema, se estou segura. É um sentimento difícil de controlar, por mais que saiba que tenho proteção e que esse talvez não seja o momento de tentarem algo contra mim. Mas a motivação de contar a verdade, de esclarecer o público de todo o mundo, inclusive do Brasil, sobre a morte de Sacha é enorme.

Alguns de seus familiares ainda vivem na Rússia. A senhora teme por eles?

MARINA: Sim. Meus familiares que mais amo vivem na Rússia. É claro que tenho muito medo de que algo possa acontecer com eles, principalmente após a publicação deste livro. Mas também sei que não dizer a verdade não vai fazer com que eles fiquem mais protegidos. Mas tenho esperança de que os envolvidos nessas atrocidades saibam que não devem ir muito além, matando gente inocente, que não tem qualquer tipo de informação útil para eles.