Título: A via ocidental
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Globo, 11/06/2007, Opinião, p. 7

Há "excesso de democracia" na Venezuela, diz o presidente Lula, no que é seguido por seus assessores. Talvez haja excesso em suas palavras. Não há perigo, assevera ele. O perigo é relativo, sobretudo considerando a concentração de poderes em mãos de Chávez, que segue em seu projeto de instalar o socialismo, o autoritarismo, naquele país. O PT não poderia ficar atrás neste "momento histórico", ao proclamar que tudo se faz segundo os "trâmites da legislação", justificando, mediante o fechamento da rede RCTV, o sufocamento da liberdade de imprensa. Tudo é feito "democraticamente", "legalmente", mas com quais democracia e legalidade estamos lidando?

Os equívocos na caracterização da experiência venezuelana residem na identificação, indevida, entre Revolução socialista e uso da violência enquanto forma de conquista do poder. O socialismo foi tomado como sinônimo de um golpe militar ao estilo da tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques na Rússia, da guerra civil na China ou dos assaltos a quartéis por Fidel Castro e Guevara, em Cuba. É como se não houvesse um outro meio de conquista do Estado, voltando-o, aí, contra a sociedade. Há, porém, uma outra via, a "democrática", de acesso socialista ao poder. Chamemos a primeira, a via "oriental" e, a segunda, a via "ocidental".

A via oriental se caracteriza pelo uso da violência, com um partido de vanguarda, centralizado, que segue as ordens de uma cúpula. A democracia é considerada como uma superestrutura que deve ser eliminada, por ser um mero instrumento de dominação da burguesia. A hierarquia partidária, cujo exemplo mais acabado é o partido bolchevique, organiza os seus militantes segundo uma férrea disciplina, não deixando espaço para a crítica ou a reflexão pessoal. Com tal propósito, era necessário que uma ideologia suscitasse a adesão completa dos seus membros. O marxismo e o marxismo-leninismo, ao prometerem uma sociedade socialista, a redenção da Humanidade, preenchiam essa função. Até hoje, observamos que o socialismo é dotado de uma aura, enquanto os seus críticos são considerados como "hereges", "imorais", quase inumanos.

A via ocidental de conquista do poder prescinde da violência explícita, utilizando os meios democráticos para a captura do Estado e o controle da sociedade. Não podemos, no entanto, nos equivocar com a questão central: os meios democráticos são usados para destruir a própria democracia. Experiências desse tipo foram utilizadas na antiga Tchecoslováquia, onde a conquista do poder foi feita através de eleições. Hitler, numa outra vertente, chegou democraticamente ao poder, para destruir a democracia. Gramsci, por sua vez, teorizou sobre a conquista da opinião pública, mediante o aparelhamento de escolas, universidades e redações de jornais enquanto meio de conquista do poder.

Trata-se de um erro crasso identificar a democracia à realização de eleições. Eleições são uma condição da democracia, porém não a esgotam. Há outras condições tão ou mais importantes. Para que uma democracia se efetive é necessário: a) criar e manter condições para que a oposição, em minoria, possa chegar, por sua vez, ao poder; b) o respeito às leis, que não podem ser mudadas segundo o bel-prazer dos governantes; c) ampla liberdade de opinião, de organização e de manifestação; d) independência dos poderes, de tal maneira que haja um equilíbrio institucional; e) autonomia dos meios de comunicação, que não devem ser controlados e monitorados pelo Estado.

O que faz o ditador-presidente da Venezuela? Ele: a) restringe, cada vez mais, o espaço das oposições, passando, progressivamente, a criminalizá-las por exercer a sua função; b) destrói o estado de direito. O ditador-presidente passa a governar por lei-delegada, tornando-se ele mesmo o Poder Legislativo; c) sufoca a liberdade de opinião, surgindo o crime de delito de opinião, como o de falar mal do ditador-presidente ou de seus familiares; d) elimina a autonomia dos poderes Legislativo e Judiciário, que passam a seguir as ordens do ditador-presidente; e) controla os meios de comunicação; alguns são estatizados, de modo que as vozes discordantes se calem.

Não deve, portanto, estranhar a sedução que esse projeto exerce sobre o PT, o PSOL, o MST, a CUT, a CPT e outras organizações. Não há perigo?

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.