Título: A classificação é só indicativa
Autor: Biscaia, Antonio Carlos
Fonte: O Globo, 14/06/2007, Opinião, p. 7

A Constituição federal de 1988 prevê a classificação indicativa (art. 21, XVI) e, ao vedar expressamente "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística", dispõe que compete à lei federal "regular as diversões e os espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada" (art. 220, §2º e §3º).

O simples fato de estarmos a quatro anos discutindo democrática e sistematicamente a aplicação de uma norma constitucional, por si só, já é razão suficiente para comemorar. Até porque ainda hoje, passados quase 20 anos da promulgação da Constituição "Cidadã", poucos são os exemplos de normas que saíram do papel e ganharam as ruas como políticas públicas relevantes para a sociedade.

Desde 1990, quando surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, diferentes governos editaram portarias para regulamentar princípios e regras relacionados ao dever de classificar. Em 2000, o Ministério da Justiça deu um passo decisivo para que a classificação indicativa se transformasse numa ação do Estado destinada a garantir a liberdade de expressão e a proteção de crianças e adolescentes contra programações inadequadas, destacando na Portaria 796 o Ministério Público como fiscal do processo de classificação. Convém frisar: a classificação indicativa significa, antes de tudo, uma recusa à censura e ao exercício do poder de polícia sobre a manifestação do pensamento, uma vez que não veta, mas apenas indica o horário em que o programa deve ser veiculado.

Recentemente publicada, a Portaria 264, de 2007, consagrou o princípio da autoclassificação pelas empresas de radiodifusão, transformou a análise prévia de conteúdo numa exceção à regra e afastou qualquer possibilidade de classificação de programas jornalísticos. A nova portaria instituiu procedimentos para a participação qualificada e organizada de todos os interessados na classificação.

É fácil verificar a evolução e a democratização do sistema de classificação indicativa: basta comparar entre si cada uma das portarias editadas ao longo dos últimos dezessete anos e os regulamentos produzidos pela Censura Federal. Mas as diferenças não se resumem aos textos normativos, as práticas também são completamente distintas.

Há pesquisas, como o trabalho da professora Leonor Souza Pinto, que permitem uma comparação minuciosa entre, por exemplo, a atividade de análise dos quase 300 censores e a atividade dos 25 analistas da nova classificação. Se analisarmos lado a lado um processo da extinta Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e um processo do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus) veremos que é a metodologia da análise que confere ao trabalho do Dejus uma "densidade discursiva", isto é, um lastro democrático equiparável à Inglaterra, aos EUA, à França e à Espanha. Vale esclarecer que as democracias mais consolidadas do planeta também adotam sistemas de regulação horária de conteúdos audiovisuais, todos muito semelhantes ao formato proposto pelo Ministério da Justiça.

Não é difícil compreender que a classificação indicativa não tem nada a ver com a censura. Contudo, certas questões, que dificilmente poderiam ser resolvidas no debate público, não podem impedir as conquistas até agora obtidas por todas as partes desse processo. Não podemos perder o foco da questão que produzimos - emissoras e organizações da sociedade civil - juntos: deve o Estado (Ministério da Justiça, Ministério Público e Poder Judiciário) proteger crianças e adolescentes, na ausência de seus pais e responsáveis, de programas inadequados através da imposição de limites horários às emissoras de televisão?

Enquanto o Supremo Tribunal Federal não nos oferece uma resposta definitiva a essa pergunta, a Secretaria Nacional de Justiça fará com que o Dejus cumpra as suas atribuições sem qualquer risco de travestir-se de "censor utópico".

Se a democracia pode ser entendida como um "processo de legitimação de conflitos", como sustenta o ministro Tarso Genro, nosso trabalho é assegurar que, ao final, toda a sociedade possa compreender quais são os direitos e os deveres em jogo. A defesa de uma política de classificação indicativa está relacionada ao fortalecimento do poder de decisão das famílias e à proteção dos direitos de crianças e adolescentes. A intervenção do Estado está, portanto, baseada na garantia de tais prerrogativas.

ANTONIO CARLOS BISCAIA é secretário nacional de Justiça.