Título: A busca da legitimidade
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 15/06/2007, O País, p. 4

Parece que finalmente caiu uma ficha coletiva, e a opinião pública começou a se interessar pela reforma política, abrindo uma nova etapa, aparentemente mais profunda e, esperamos, também mais profícua, nesse debate fundamental para o futuro do país. Este é um antigo hábito brasileiro, o de deixar para decidir na última hora, desde as providências mais banais do dia-a-dia até as grandes questões que dizem respeito à cidadania. Foi assim no referendo sobre o desarmamento, que teve o resultado previsto alterado na reta final; é assim na entrega anual do Imposto de Renda; foi assim até mesmo na última eleição presidencial, quando a ida para o segundo turno foi uma decisão de última hora do eleitorado, um alerta para que Lula descesse do pedestal em que se colocara e viesse para a planície buscar os votos de que necessitava.

A ajuda da denúncia de compra do dossiê fajuto pelos trapaceiros ligados ao PT só confirmou um procedimento padrão, que se repete neste segundo mandato. Foi suficiente para colocar dúvidas em uma parcela do eleitorado, que já havia sublimado o episódio do mensalão, mas não foi suficiente para derrotar Lula, muito ajudado também pela incapacidade do adversário de defender suas próprias posições.

Mas, voltando à reforma política, tida consensualmente como a "mãe de todas as reformas", o sistema de lista fechada, que parecia fadado à aprovação sem grandes contestações, pois agradava às máquinas dos grandes partidos, acabou sendo percebido pela opinião pública como um grande golpe contra o eleitor, e pelos deputados e senadores como um instrumento que os submeteria à ditadura da nomenclatura partidária, retirando-lhes o poder de barganha que hoje têm de sobra.

Há um consenso entre os estudiosos de que, da maneira como é montado nosso sistema eleitoral, dele resultam políticos excessivamente independentes das estruturas partidárias, sem compromissos programáticos, e um quadro partidário fragmentado. Os partidos são fragmentados por dentro, com facções e grupos disputando o poder, mas principalmente são inúmeros, quase que se pode dizer customizados, para servir a interesses específicos de grupos ou pessoas.

A solução da lista fechada, embora em tese fortaleça os partidos, acabaria se transformando em mais uma manobra para manter a hegemonia de grupos já no comando político das diversas agremiações partidárias, e dificultaria ainda mais a possibilidade de renovação do Congresso.

Uma maneira esperta de mudar para continuar tudo no mesmo, como sugeria Lampedusa. Dessa batalha parlamentar, no entanto, ficou explicitada uma evidência, que já era pressentida, gerando um profundo mal-estar na cidadania: o Congresso precisa mudar de verdade para voltar a ser respeitado pela opinião pública.

Ainda vemos por todos os lados os sinais de que os políticos estão dissociados da sociedade, sendo o maior exemplo atual a vergonhosa ação entre amigos em que se transformou o processo contra o presidente do Senado, Renan Calheiros.

Um misto de corporativismo e machismo, anacronismos típicos da nossa classe política, impede que haja uma solução adequada para a questão, e desmoraliza ainda mais o Senado.

Mas existe também um sentimento de que estamos chegando ao limite de nossa irresponsabilidade cívica, e há alguns sinais de que existem caminhos para reconciliar a opinião pública com a classe política. As diversas emendas que estão sendo examinadas para que uma nova proposta surja mostram os variados caminhos possíveis para dar uma organização mais moderna e republicana às disputas eleitorais, desde o controle do gasto eleitoral, com limitações e obrigatoriedade de publicação na internet em tempo real, até a fidelidade partidária.

Existem mesmo propostas que procuram impedir que as campanhas eleitorais sejam palco de promessas vãs que depois não serão cumpridas. O sistema de recall, que permite aos eleitores retirar um representante do Congresso, e mesmo do governo, caso descumpra preceitos básicos dos compromissos assumidos na campanha eleitoral, ou se mostre ineficiente à frente da administração, também aparece entre as propostas que estão vindo à tona neste debate renovado.

Dentro do espírito de fazer com que o cidadão participe das decisões, a proposta de realização de um plebiscito para aprovação da reforma política, e o surgimento com força do voto distrital misto como o sistema eleitoral mais moderno e capaz de aproximar o eleito do eleitor, mostram que agora sim se começou a discutir para valer uma reforma político-eleitoral que dê uma nova dinâmica à representação popular.

Não existe ainda clareza com relação ao assunto, mas cresce entre os políticos o sentimento de que a chancela popular seria imprescindível para dar ao eleitorado a sensação de estar participando de uma decisão fundamental para o seu próprio destino. É possível que os políticos prefiram eles mesmos definir as novas regras, e o plebiscito seria uma maneira de tentar referendá-las pelo voto popular.

Ou seria possível até mesmo apresentar aos eleitores duas ou três opções de sistema eleitoral, para que a maioria decidisse qual serve melhor ao país. Durante a campanha municipal do próximo ano, os partidos tratariam de defender suas posições nos programas eleitorais.

A preocupação com a legitimidade é tão grande que, embora a convocação de plebiscito não exija a aprovação de três quintos da Câmara, mas apenas maioria simples, há a proposta de convocá-lo através de quórum qualificado.