Título: Os limites do poder
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 17/06/2007, O País, p. 4

A posição do PT e do governo brasileiro como um todo, em defesa da decisão do governo venezuelano de não renovar a concessão da rede de televisão RCTV, revela uma visão autoritária das relações com os meios de comunicação, acusados permanentemente de se colocarem na oposição também aqui no Brasil. O ex-ministro da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken, retirado do governo no bojo da crise do mensalão, fazia uma análise bastante pragmática da situação. Mesmo tendo certa vez, para defender as diretrizes da agência de audiovisual que foram consideradas "stalinistas" por intelectuais, dito que "nenhum direito é ilimitado", admitiu que "a sociedade brasileira já deu os limites ao PT" ao reagir contra não apenas à Ancinav, mas também ao Conselho de Jornalismo que pretendia "controlar" o exercício da profissão e, mais recentemente, à classificação indicativa para a programação de televisão.

Muito além da discutível legalidade de certos atos, como o de represália do governo do protoditador Hugo Chávez contra o canal de televisão mais popular da Venezuela, está "a prevalência dos direitos humanos", como lembra o ex-Chanceler e jurista Celso Lafer.

Além da cláusula democrática a que está submetido qualquer membro do Mercosul, há também a Convenção americana sobre Direitos Humanos, o chamado "Pacto de San José", de 1969. Em seu artigo 13º, que trata da "Liberdade de pensamento e de expressão" está dito:

1- Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

Como se vê, mesmo que tenha seguido a legalidade do hiperpresidencialismo bolivariano, a não renovação da licença da RCTV fere cláusulas do Pacto de San José sobre direitos humanos, e a defesa da universalidade desses direitos supera, segundo Lafer, a posição de não interferência nos assuntos internos dos países, alegada nos primeiros momentos da discussão pelo presidente Lula para não se pronunciar: "Cada um cuida de si", resumiu o presidente brasileiro.

Se fosse assim, lembra o ex-chanceler Celso Lafer, não seriam cabíveis as críticas à violação dos direitos humanos, que considera corretas, em relação à prisão americana de Guantánamo. Há também quem tema que o projeto de classificação indicativa possa ferir a exigência de que a liberdade de expressão não pode estar sujeita a "censura prévia", especialmente quando se tratam de programas jornalísticos.

Na Venezuela, a partir da nova lei, a liberdade de informação ficou sujeita a critérios subjetivos, que resultaram em pressões governamentais e fortes penalidades a emissoras que se colocaram na oposição ao governo. Também na Argentina de Néstor Kirchner, ou na Bolívia de Morales, há sinais de que o hiperpresidencialismo está sendo montado, ao mesmo tempo que Kirchner e Morales pressionam os meios de comunicação com palavras de críticas, como parece ser o hábito dos governantes atuais. E não apenas ao sul do Equador. O primeiro-ministro Tony Blair, às vésperas de se retirar do poder depois de 10 anos, classificou os meios de comunicação de "bestas selvagens" que destróem reputações.

E não são apenas os governantes. Nos debates ocorridos na sexta-feira na Comissão de Ética do Senado, quando se decidiu adiar a decisão sobre o destino do presidente do Senado, Renan Calheiros, depois que uma reportagem do Jornal Nacional mostrou que ele usou notas fiscais frias para justificar a venda de gado, vários senadores atribuíram aos meios de comunicação a crise em que o Senado está metido.

Numa inversão de valores perversa, alguns senadores defenderam a tese de que somente com a absolvição de Calheiros o Senado mostraria sua independência, mesmo que nenhuma perícia nos documentos fosse feita.

A senadora Ideli Salvatti, líder do PT, chegou ao cúmulo de dizer que o Senado não poderia estar sempre correndo atrás de dar explicações para todas as denúncias que surgissem. Como se um dos Poderes da República estivesse isento de dar explicação à opinião pública.

A posição da grande classe média formadora de opinião nos centros urbanos do país, no entanto, não deixa que esse tipo de político prevaleça impune. Alarmada com a ministra do "relaxa e goza"; abismada pelas façanhas do irmão Vavá; e revoltada com as reclamações do próprio Lula de que só os brasileiros falam mal do seu país, como se não houvesse razões para as críticas, essa massa de cidadãos mais uma vez revela seu descontentamento nas cartas de leitores dos jornais, nas mensagens trocadas pela internet.

Pode não ser numericamente suficiente para barrar a eleição deste ou daquele, mas é suficientemente forte para rejeitar maracutaias como estão sendo armadas no Senado. E para impor limites aos poderosos.