Título: Pernambuco: 46 mil assassinatos em dez anos
Autor: LIns, Letícia
Fonte: O Globo, 17/06/2007, O País, p. 13

No ano passado, 4.638 foram vítimas de homicídios; 38 acusados irão ao banco dos réus, e só 24 aguardarão julgamento

RECIFE. "A sociedade não agüenta mais." O desabafo, exposto em uma faixa negra junto ao cemitério de mil cruzes plantado no início do mês na Praia de Boa Viagem, na capital, reflete a realidade de Pernambuco, onde cerca de 46 mil pessoas foram assassinadas ao longo da última década. De acordo com o próprio Palácio do Campo das Princesas, o estado tem o pior resultado nas estatísticas nacionais da violência em 18 de uma série histórica de 25 anos.

Os números oficiais indicam 2.097 pessoas assassinadas em 2007, até o fim do mês de maio. No ano passado, 4.638 pessoas foram vítimas de homicídios no estado. Como se não bastasse a triste estatística, outro problema inquieta a sociedade pernambucana: a impunidade. Ao fim de um ano, apenas 38 dos responsáveis por homicídios terão chegado ao banco dos réus, e só 24 aguardarão julgamento.

Estudo divulgado no início do ano por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco indica uma realidade inquietante. A elucidação de homicídios só ocorre em 20% dos inquéritos instaurados na polícia civil. Os autores do estudo analisaram 2.114 casos ocorridos no período de um ano, e concluíram que, 12 meses depois, só 0,8% dos inquéritos chegou a julgamento, e 0,5% estava para ser julgado. Os pesquisadores José Luiz Ratton e Flávio Cireno mostraram que dois terços dos homicídios não haviam sido sequer alvos de investigação. E que 39% dos encaminhados ao Ministério Público não apontavam a autoria do crime.

Blog faz contagem de cadáveres

Só no último fim de semana - de meio-dia da sexta-feira a meio-dia de segunda -, 54 cadáveres foram computados pelo PEbodycount, blog criado por quatro jornalistas policiais pernambucanos para denunciar o elevado índice de homicídios no estado, 2.261 só este ano, 90 esta semana. Preocupado com os números, o governador Eduardo Campos (PSB) lançou o Pacto pela Vida, programa de segurança de governo. Coordenado por Ratton, o pacto prevê uma redução de 12% ao ano no número de assassinatos. Seriam cerca de 570 casos a menos.

A eclosão das mortes violentas teria ocorrido no início da década passada.

- De 1991 a 2000, o número de homicídios cresceu 52% em Pernambuco, e 102,8% entre os jovens - alerta o médico João Veiga, especialista em violência e há duas décadas plantonista do Hospital da Restauração, maior emergência da capital.

No período, ele viu mudar o perfil dos pacientes. Afirma que, antes, 60% dos atendimentos de portadores de lesões provocadas por causas externas eram vítimas de trânsito e 40%, de violências interpessoais. Em 2004, o inverso: 14% dos atendimentos eram decorrentes de trânsito, e 85% haviam levado tiros, facadas, pancadas. Seu último estudo, revelado com exclusividade ao GLOBO, indica que o problema continua a se agravar. Entre 2000 e 2006, aumentou em 22% o número de pessoas atendidas vítimas de armas de fogo, apesar da campanha do desarmamento. E subiu em 47% a quantidade de pacientes que sofreram agressões físicas na emergência daquele hospital.

Nos primeiros quatro meses do ano, o número de homicídios cresceu 8,4% quando comparado a igual período do ano passado. Os números são da própria Secretaria de Defesa Social. O Palácio do Campo das Princesas afirma que, com as intervenções do Pacto pela Vida, esses números tendem a se reduzir. De acordo com o último Mapa da Violência, há o registro de 50,7 pessoas assassinadas para cada grupo de cem mil habitantes em Pernambuco. Em Recife, os números são ainda piores: 91,08 pessoas para 100 mil moradores. Entre os jovens, as proporções tornam-se alarmantes: para cada grupo de l00 mil habitantes, 101,5 morrem vítimas de tiros, facadas, pancadas. Em Recife, os percentuais superam o dobro do registrado no estado: morrem 223,06 jovens para cada 100 mil pessoas. Só ano passado, 4.638 pessoas foram assassinadas em Pernambuco.

- Não sei o que está provocando esse extermínio brutal da população pernambucana. Aqui a vida humana não tem valor e perde completamente o sentido. Deve haver determinações históricas e sociais, desde o tempo do cangaço, para que essa realidade seja tão dura. O curioso é que estados como Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe, que possuem mais ou menos a mesma formação social, não têm essa característica tão violenta - afirma Júlio Jacobo Waiselfisz, autor de sete mapas da violência publicados no país, para quem, além de questões culturais, a impunidade alimenta a prática de se matar por quase nada.

No último mapa, editado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos para Educação, Ciência e Cultura (OEI), ele mostra mais uma vez a gravidade da situação: 45,4% dos municípios pernambucanos (84) estão entre os 10% mais violentos do país. Ou seja, o problema já não se restringe à região metropolitana. Ele estranha números tão altos:

- Até porque, diferente do Rio de Janeiro, em Pernambuco a indústria do narcotráfico ainda não controla com tanta intensidade os territórios nem permeia tanto o aparelho de segurança pública. Pernambuco tem tráfico de drogas, mas não com a estrutura pesada do Rio.

A "cultura da violência"

O secretário de Defesa Social, Romero Menezes, no entanto, cita, pela ordem, os seguintes motivos para o excesso de homicídios: a desigualdade social; o fato de Pernambuco ser o maior produtor brasileiro de maconha; o crescimento do consumo de crack; a ação de grupos de extermínio; e, por fim, os motivos banais.

Entidades sociais e familiares de vítimas que fizeram o protesto na Praia de Boa Viagem contra a violência acreditam que a impunidade vai perdurar.

- Infelizmente, por parte das autoridades, não temos a sensação de que essa coisa vai mudar. Os assassinos da minha mulher só foram localizados porque a própria comunidade onde moravam os entregou - diz Acrísio Coutinho, 53, que teve a mulher, a professora Altina Margarida Coutinho, 57, assassinada a tiros em um assalto na Praia de Boa Viagem há menos de um mês.

Para Jacobo, além da impunidade, Pernambuco se caracteriza pela cultura da violência, o que se pode observar através dos altos percentuais dos crimes de proximidade. Os números levantados pelo médico João Veiga, do Hospital da Restauração, confirmam a tese: 55% das pessoas agredidas que chegaram ao HR foram vítimas de parentes de primeiro grau, amigos, vizinhos.

- Além da redução da impunidade e de iniciativas sociais, é preciso mudar essa cultura da violência no estado, onde qualquer problema se resolve com o extermínio - diz Jacobo.