Título: Descrença no Código causa matança no trânsito
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 20/06/2007, O País, p. 8

Normas completam dez anos, mas, sem punição, número de mortos nas estradas já passa de 35 mil por ano.

BRASÍLIA. Criado para frear os acidentes, o Código Brasileiro de Trânsito completa dez anos em setembro sem motivos para festa. O número de mortes no asfalto sofreu uma queda brusca depois da aprovação da lei, que aumentou o valor de multas e transformou em crime infrações como dirigir bêbado. Mas voltou a subir de forma acelerada a partir de 2001, e já ultrapassa o patamar anterior ao código. No ano passado, o Datasus contabilizou 35.753 vítimas da imprudência ao volante no país, quase cem vidas perdidas por dia. Coordenador de um estudo inédito sobre o tema, o economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, atribui a nova alta a dois fatores: a má aplicação da lei e a impunidade dos responsáveis por acidentes.

- O código produziu um impacto imediato, mas perdeu força ao longo dos anos. Embora as punições sejam claras, sua aplicação na Justiça é cada vez mais frouxa. Isso reflete o descrédito geral nas leis - avalia Neri.

A dor de perder um parente no trânsito costuma se prolongar nos corredores dos tribunais. Casos como o do jogador Edmundo, envolvido num acidente que matou três jovens em 1995, na Lagoa, arrastam-se anos a fio. O atacante foi condenado a quatro anos e meio de prisão, mas só passou uma noite na cadeia. Em 2005, foi flagrado dirigindo embriagado e, em fevereiro deste ano, voltou a ter a habilitação suspensa. O processo pelo acidente está parado por embargo no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

Não há preso por atropelamentos

Como os responsáveis por mortes respondem por homicídio nas varas criminais, não há estatísticas sobre a condenação de responsáveis por mortes nas estradas do país. O advogado Gilberto Gaeski aguarda o julgamento da jovem que, em 2004, atropelou e matou sua filha de 16 anos. A indignação com recursos e cartas precatórias que adiam a decisão judicial o levou a criar o Instituto Dias Melhores, que dá assistência jurídica gratuita a parentes de vítimas do trânsito no Paraná. Apesar do engajamento, ele admite não ter esperanças na punição da motorista, que dirigia alcoolizada:

- Tenho certeza de que, mesmo condenada, ela não vai para a cadeia. Até quando há mortes, os juízes consideram a imprudência ao volante uma infração menor. Os crimes de trânsito nunca são prioridade.

O pessimismo é compartilhado pelo advogado da Comissão Cidadã do Detran-RJ, Marcelo Nogueira. Ele elogia os avanços do código, mas reclama da aplicação de penas alternativas sem função educativa, como o pagamento de cestas básicas:

- Os crimes de trânsito foram banalizados pela Justiça. Trabalho nisso há muito tempo, e não conheço ninguém que esteja preso por ter provocado colisões ou atropelamentos.

Em muitos casos, quem é flagrado embriagado ou sem habilitação ao volante não é sequer punido, protesta o diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), Alfredo Peres da Silva. Isso acontece quando se entende que o condutor não provocou riscos a terceiros, embora as duas infrações estejam previstas na lei.

- Os juízes alegam que as cadeias estão cheias. Um argumento frágil. Sem penas duras, não há recuo nos índices - diz.

As punições administrativas por culpa em acidentes ou acúmulo de pontos também não têm surtido efeito. Levantamento do Denatran, feito a pedido do GLOBO, mostra que 20,5 milhões de habilitações foram suspensas ou cassadas do início de 2004 a março deste ano. No entanto, decisões que determinam o cancelamento de multas e a desorganização dos departamentos estaduais de trânsito reduzem a eficácia da punição.

- Parece que as pessoas se acostumaram com o valor das multas. Além disso, mais de 25% dos veículos estão em situação irregular. O motorista que não paga multas e licenciamento anual não se importa com o número de infrações que comete. Falta fiscalização - diz Alfredo.

Os especialistas são unânimes ao defender o investimento em campanhas de conscientização no trânsito, que consomem R$10 milhões por ano, como arma para reduzir as mortes nas estradas. Um projeto que eleva o orçamento do setor para R$65 milhões anuais aguarda sinal verde do Ministério do Planejamento. O aumento de despesas pode significar economia: segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em dezembro passado, o país gasta R$22 bilhões por ano com acidentes em rodovias federais. O cálculo considera despesas com remoção, atendimento médico, perda de cargas e custas judiciais.