Título: Vigiar e punir
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 23/06/2007, O Globo, p. 2

Deu-se uma pausa no desenrolar do drama do Senado. Depois da escaramuça ao sol ardente, com a desculpa de não haver relator, os batalhões tomam fôlego e revisam a estratégia à sombra. Agora entrou em cena, mal dissimulada em véus, a luta política, a ambição pela presidência da Casa. Com sua instalação, a inocência ou a culpa de Renan, a contabilidade de seus bois e a origem de suas rendas deixam de ser relevantes. Esse é o defeito insanável desse sistema de punição dos pares pelos pares.

Justiça perfeita não há, mas nos julgamentos políticos têm lugar a subjetividade, a empatia e seu oposto, a paixão e o ódio, e, sobretudo, as ambições de poder. Por isso é bizarro e anacrônico esse regime em desuso crescente nas democracias ocidentais, o de exigir a cassação do par eventualmente transgressor como ato de redenção dos parlamentos. No meio jurídico é muito apreciado um dito clássico do jurista italiano Francesco Carrara, que se recusava a tratar de crimes políticos dizendo que "quando a política penetra no templo da Justiça, esta foge pelas janelas espavorida".

Democracias mais maduras e saudáveis, nesses casos, têm optado pelo envio da denúncia a uma suprema corte forte, independente e equipada para examinar com agilidade o processo. Concluindo pela existência de indícios, ela determina a investigação e a suspensão do mandato do investigado. Se inocentado, reassume. Se condenado, perde o mandato.

Nesses Conselhos de Ética da Câmara e do Senado temos visto de tudo: poucas condenações, muitas pizzas, esquecimento dos prazos e renúncias combinadas. Cassações sem provas consistentes também já aconteceram na Câmara, como as de Ibsen Pinheiro e Alceni Guerra. Esse mesmo Conselho do Senado, que vem exibindo todo seu despreparo, sumiu com a denúncia escabrosa contra o senador Geraldo Mesquita, acusado (com base em indícios fortes) de embolsar parte do salário dos auxiliares que contratava pelo Senado. O conselho não tem regimento, não tem regras e sequer poderes para investigar Renan. Pedindo isso à PF, pisou na Constituição, pela qual só o STF tem essa prerrogativa. No conselho inexiste até a certeza de que o acusado já responde a processo de cassação, como acha seu presidente, Sibá Machado.

Houve a hora em que a maioria quis Renan. A contabilidade bovina inconvincente e a atuação chocante da tropa de choque complicaram tudo. Agora, já se discute o funeral. Renan tem ainda uma chance porque o DEM e o PSDB, depois de sonhar com a cadeira da presidência (para Marco Maciel ou para Jereissati), concluíram que não será possível tirá-la do PMDB. Só não está morto porque não se criou consenso em torno de um sucessor. Havendo sucessão, será de alto custo para o governo. Mais que a vontade do Planalto, pesará a dos Sarney, que se inclinam por Valdir Raupp.

Tendo curso o processo de cassação, até os garçons do café do Senado apostarão o salário na absolvição de Renan pelo plenário, onde o voto é secreto. O que está em jogo, portanto, é a cadeira de presidente, que ele se recusa a entregar, exigindo dos pares, como filosofa o líder Arthur Virgílio, a grandeza de matar pela frente.

Outra forma de o Congresso livrar-se desses julgamentos sangrentos é chamando o povo: aprovando a revogabilidade do mandato pelo voto.