Título: É um crime hediondo
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 23/06/2007, O País, p. 3

Impunidade é regra no Brasil até para casos de desvio de recursos da educação.

Aimpunidade não poupa nem a educação. Levantamento de auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU) revela que 11% dos desvios descobertos entre 2003 e 2006 aconteceram no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que financia, por meio de repasses do governo federal a estados e municípios, a merenda escolar e o livro didático. Os números são assustadores: em quatro anos, mais de R$250 milhões escorreram pelo ralo da corrupção. Quase nada, segundo o próprio TCU, foi recuperado.

A impunidade fez crescer os casos de desvios, atingindo um setor-chave para o desenvolvimento do país. De 2003 a 2006, aumentaram 122%. Só no último ano, foram R$99 milhões em 430 processos. Depois de detectar fraudes e condenar administradores, o TCU envia o caso para a Advocacia-Geral da União (AGU), que tenta, sem muito êxito, recuperar os recursos na Justiça. A maior dificuldade é levantar o patrimônio dos suspeitos.

- Quase nada é recuperado, e sabemos que, nos processos criminais, quando os suspeitos são denunciados pelo Ministério Público, são raras as condenações. Cria-se a imagem de que desviar dinheiro público não traz conseqüência - lamenta o procurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado.

O ministro do Controle e da Transparência, Jorge Hage, diz que a corrupção envolvendo recursos da merenda escolar é ainda mais grave, pois retira um direito básico da população:

- Considero crime hediondo. Devia ser punido com qualificador de agravamento da pena.

Operação Gabiru: ninguém foi julgado

Por meio de sua assessoria, o ministro da Educação, Fernando Haddad, disse que não cabe ao ministério exercer poder de polícia, mas acionar os órgãos competentes, o que tem sido feito, segundo ele.

A lentidão na tramitação de processos ajuda a livrar da condenação políticos e servidores flagrados em esquemas. Após prender oito prefeitos, um deputado estadual e cinco ex-prefeitos por desvio de verbas da merenda e da educação em Alagoas, a Operação Guabiru, da PF, completou dois anos e um mês sem que ninguém tenha sido sequer julgado.

O MP Federal denunciou 54 pessoas por corrupção, falsidade ideológica e formação de quadrilha, mas até hoje o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Pernambuco, não concluiu a análise de defesas prévias nem decidiu se aceita a denúncia. Depois de breves detenções, em 2005, os prefeitos reassumiram os cargos. Nos últimos dois anos, o MEC repassou mais de R$3 milhões às oito prefeituras.

O delegado da PF Andrei Augusto Passo Rodrigues, que coordenou a Guabiru, critica a demora do Judiciário e diz que tamanha lentidão é responsável pela impunidade no país:

- É assombrosamente lento, uma coisa absurda. Talvez uma das causas da impunidade seja esta lentidão.

A Guabiru (rato ou gatuno) foi desencadeada a partir de auditorias da Controladoria-Geral da União (CGU). A CGU detectou fraudes na compra de merenda em municípios de Alagoas, estado com o maior índice de analfabetismo no país. Em São Luís do Quitunde, os estudantes haviam passado o ano inteiro sem merenda, em 2003.

Para Hage, a culpa não é dos juízes, mas do Código de Processo Penal, que permite uma infinidade de recursos, e do foro privilegiado, que transfere à segunda instância casos envolvendo prefeitos.

- As leis processuais são feitas para que o processo penal não chegue ao fim. Os criminosos do colarinho branco podem pagar os melhores escritórios de advocacia, e um bom advogado encontra, nas leis processuais, instrumentos suficientes para impedir que qualquer processo chegue ao fim em menos de dez ou 20 anos, quando muitos crimes já prescreveram.

Embora não haja estimativa oficial sobre o montante desviado, o procurador regional da República em Pernambuco Francisco Rodrigues dos Santos Sobrinho, responsável pela denúncia, afirma que ultrapassa R$10 milhões. Ele diz que nenhum dos prefeitos foi afastado do cargo, após se livrarem da prisão temporária ou preventiva. Rodrigues propôs ao TRF que o processo seja desmembrado em cinco partes, uma delas dedicada aos prefeitos. Segundo ele, o alto número de acusados justifica a demora:

- Não diria que é descaso da Justiça ou omissão. O caso é complexo e volumoso. Não chegaria a acusar a Justiça de estar sendo relapsa, conivente, omissa. Dadas as circunstâncias, a demora é justificada.

A PF concluiu que a organização criminosa fazia licitações de fachada para justificar desvios, mediante empresas fantasmas e notas frias. Outras licitações eram direcionadas a empresas do grupo criminoso. As prefeituras compravam produtos piores ou em menor quantidade do que o negociado, além de inflar o número de estudantes para receber verbas federais maiores.

A operação, de 17 de maio de 2005, fez 26 prisões. Segundo a PF, o chefe da organização criminosa era o ex-prefeito de Rio Largo José Rafael Torres Barros, que teria corrompido seu primo e então procurador-geral do TC de Alagoas José Correia Torres.

O presidente do FNDE, Daniel Balaban, não quis comentar o caso. Ontem, enviou nota informando que as denúncias são encaminhadas à auditoria do FNDE, à CGU e ao MP. O TRF da 5ª Região informou que, após receber a denúncia do MP, intimou os 54 acusados para que apresentassem defesa preliminar por escrito. O material foi encaminhado ao MP, que só teria devolvido o processo em novembro passado. A denúncia contém inúmeras caixas de documentos, que ocupam uma sala do gabinete do desembargador-relator Marcelo Navarro. O processo tramita em segredo de Justiça.

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