Título: Voto autônomo
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 24/06/2007, O País, p. 4

A reeleição de Lula em 2006 trouxe a reboque um fenômeno que, se já era pressentido, só agora está constatado em pesquisa acadêmica: o eleitorado brasileiro mudou de comportamento, apresenta uma tendência crescente de fragmentação, como se houvesse um desalinhamento na base partidária, com eleitores mais independentes dos partidos políticos, que se mostram incapazes de organizar as demandas eleitorais, de canalizar a vontade do eleitor. Uma pesquisa sobre os resultados eleitorais de 1994, 1998 e 2006, do cientista político Nelson Rojas de Carvalho, especialista em análises eleitorais, mostra claramente essa transformação, que já apresentava sinais em 2002, ano da primeira eleição de Lula, ainda ancorada no PT, mas já muito baseada na sua presença carismática.

O tipo de liderança personalista de Lula leva a isso. Segundo Carvalho, Lula reforça uma autonomização do eleitorado que pode ser perversa, porque pode significar uma não-canalização do eleitor pelas instituições políticas. Ao estimular uma comunicação direta com o eleitor, mesmo inconscientemente, em 2002, e mais deliberadamente na reeleição, Lula, que conhece bem esse jogo, incentiva nesses setores da sociedade periférica, que hoje são muito dinâmicos, uma autonomia que não é capturada pelos partidos tradicionais.

Para Nelson Carvalho, o filósofo Mangabeira Unger, nomeado ministro para planejamento de longo prazo, tem um discurso que se adapta muito bem ao momento atual, olhando essa periferia "de uma maneira positivada, não no sentido de sua incorporação, mas na exaltação de sua existência em si". Esse fenômeno seria a conseqüência da plebeização da política, conforme definição de outro teórico governista, o ministro da Justiça, Tarso Genro.

A pesquisa de Nelson Carvalho mostra que as faixas de competição nos municípios mudaram totalmente de paradigma. Nas eleições de 1994 e 1998, segundo ele, havia um "mercado de votos" muito fechado, com 50% dos municípios com concentração alta de disputa, o que ocorre em cidades em que basicamente dois deputados disputam os votos.

A partir de 2006, encontram-se nessa situação apenas 39% dos municípios. Esses dados mostram uma coisa preocupante, segundo o cientista político: hoje, há uma fragmentação eleitoral muito grande nos municípios. As análises mostram que essa situação se reproduz em praticamente todos os estados, com o Nordeste se sobressaindo nessa dispersão de votos. Na Bahia, a taxa de alta concentração de disputa predominava em 78% dos municípios em 1994, em 64% em 1998, e caiu para 48% em 2006. No Piauí, havia 78% de municípios nessa condição em 1994, e hoje essa taxa caiu para 64%.

Não foi à toa, portanto, que os partidos aliados do presidente Lula predominaram naquela região, antes dominada pelas máquinas partidárias tradicionais. O trabalho de Nelson Carvalho classifica os diversos tipos de políticos de acordo com a característica de sua votação. O chamado concentrado/dominante representa o que seria o candidato do voto distrital americano, um deputado que tem 50% dos votos de um determinado município. Ele cai para 11% em 2006, quando representava cerca de 16% nas eleições anteriores.

O concentrado/não dominante é o candidato de opinião dos grandes centros eleitorais, como o deputado Fernando Gabeira, do PV do Rio. Esse tipo de candidato permanece com cerca de 30% dos votos. O fragmentado/dominante é um tipo de distrital basicamente nordestino, que tem diversos redutos num estado e fragmenta seu eleitorado. Ele cai de uma média de 35% em 1994 e 1998 para 27% na eleição de 2006.

E o fragmentado/não dominante, que cresceu mais, é a representação menos orgânica, que tinha uma média de 20% dos eleitos e subiu para 33%, representando hoje a maior fatia do Congresso. Com números tão consistentes, segundo Nelson Carvalho, é possível dizer que "a paróquia se enfraquece, mas nem por isso o voto dos grandes centros aumenta".

Nessa alteração de números, Carvalho acha que pode haver um sinal de enfraquecimento dos partidos junto às bases. "Cada vez o eleitor está votando mais em pessoas e menos em partidos. Pode haver uma rejeição, pelo eleitorado, das proposições dos partidos, ou uma incapacidade dos partidos de canalizar as demandas do eleitorado, tanto pela via dos benefícios agregados, o clientelismo, quanto pela vocação ideológica". O fato é que os resultados eleitorais de 2006 deixam claro que os partidos não controlam o processo político como o faziam anteriormente.

Esse representante inorgânico, classificado de fragmentado/não dominante pela pesquisa de Nelson Carvalho, pode ser uma pessoa conhecida no estado, um jogador de futebol, um radialista, um evangélico, e sua predominância faz com que a competição política nos municípios esteja mais fragmentada. "Pela leitura que faço, talvez a maior fragmentação eleitoral nos municípios, e a maior espacialização da votação dos deputados, esteja a indicar um enfraquecimento do poder das máquinas eleitorais de canalizar a vontade dos eleitores", diz Carvalho.

Se isso é fato, segundo ele, preocupa e reforça os argumentos dos defensores da reforma política. "O tipo de deputado que aparece com maior crescimento está numa zona cinzenta e frágil, do ponto de vista da representação. Não representa nem a paróquia, nem a nação, dentro daquela velha disjuntiva. Acho que expressa, sobretudo, a situação de máquinas políticas enfraquecidas em seu poder de mobilizar os eleitores, seja pelo caminho do aporte de benefícios localizados, seja pela vocalização ideológica".

Esse fenômeno se reflete nas votações e negociações no Congresso. Representantes que não têm uma base sólida de votação "fazem qualquer negócio, não se sentem com responsabilidade".