Título: O ritmo da alma
Autor: Garrick, Kayode
Fonte: O Globo, 24/06/2007, Opinião, p. 7

No dia 21 de abril de 2007, um incidente infeliz ocorreu na Universidade de Brasília (UnB). Um dormitório habitado por alguns estudantes africanos foi vítima de incêndio criminoso. E, justamente, este incidente ultrajante foi extensivamente noticiado na mídia brasileira.

Porém, a presença de um número crescente de estudantes africanos na UnB e nas demais instituições brasileiras representa o reverso positivo da moeda. O que realça o crescimento da interação e da cooperação entre o Brasil e a África. Esse acontecimento positivo parece ser amplamente ignorado pelas mídias brasileiras. A mídia brasileira tende a divulgar o ultrajante e o trágico, quando o assunto é a África, mas cuidadosamente faz vista grossa a algo positivo e ao enaltecimento.

Desde 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência do país, ele vem dando à África um lugar de destaque na política externa do Brasil. O presidente Lula já visitou 17 países africanos, aumentou a cooperação econômica e assinou muitos acordos bilaterais com vários países africanos, e parece estar disposto a visitar mais países africanos durante este seu segundo mandato.

A cooperação do Brasil com a África já abriu novos horizontes, que incluem a 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (II CIAD) realizada em Salvador, Bahia, em julho de 2006 e a Cúpula África - América do Sul (AFRAS), realizada em Abuja em novembro do mesmo ano. Há, no momento, umas 34 missões diplomáticas do Brasil na África, enquanto o número das embaixadas africanas em Brasília já aumentou para 24. O comércio entre a África e o Brasil já subiu para novos patamares, alcançando a casa de US$15,54 bilhões de negócios em 2006. Esse é um aumento de 22,9% acima da cifra de US$12,64 bilhões registrada em 2005. O ano 2007, parece-me, será ainda melhor.

O compromisso renovado do Brasil com a África está acontecendo em um momento mais oportuno do desenvolvimento de ambos. Como é de conhecimento de todos nós, o perfil e as perspectivas do Brasil nunca foram tão bem. O país está ocupando o seu merecido lugar como operador global muito influente. A sua classificação está melhor, o seu índice de risco-país tem-se mantido em um nível geralmente baixo. A inflação está caindo e a economia se expandindo em passos estáveis e sem recessão. Em suma, o século XXI aparenta ser o século brasileiro.

A África, também, está mostrando, por outro lado, sinais de progresso e todos os indicadores nunca foram tão bons desde a independência dos países africanos. Os conflitos e as agitações têm-se reduzido bastante . A democracia está se espalhando por todo o continente africano. As oportunidades econômicas estão emergindo rapidamente em vários países. A iniciativa privada está crescendo como nunca visto. Os mercados de valores estão rendendo lucros enormes a investidores. Como no Brasil, todos os índices econômicos são positivos. A taxa de crescimento de 6% na Nigéria e de mais de 12% em Angola é muito promissora. Essas tendências nunca passaram despercebidas e os investidores do mundo afora estão tentando se consolidar na África.

As empresas brasileiras ainda não estão plenamente nessa corrida. Na verdade, a Petrobras, a Vale, a Odebrecht e algumas outras já estão atuando na África. Mas onde estão as demais? Será que uma Sadia percebe que, ao se instalar na África, esteja abrindo um mercado capaz de ser duas vezes maior que o do Brasil? Será que uma Embraer reconhece o aumento do tráfego aéreo regional na África e a capacidade de o setor se expandir ainda mais rapidamente? Suspeito que o Brasil ainda não está inteirado da emergente conexão africana e de seus potenciais.

E ninguém deveria realmente se surpreender por tudo isso. O que se iniciou como uma conexão dolorosa entre o Brasil e a África já passou por várias mutações. Não foi o obá (rei) de Benin (a minha cidade de nascença) o primeiro soberano estrangeiro a reconhecer a Independência do Brasil? O comércio entre a África e as cidades de Fortaleza, Recife, Salvador e Rio de Janeiro não prosperou antes da última década do 19º século?

O Brasil obteve o seu idioma de Portugal, mas o ritmo da sua alma é tipicamente africano. O acarajé é baiano, mas está presente na cidade de Lagos, na Nigéria, com o mesmo nome. Os passos do samba, do axé e do forró relembram os ritmos e movimentos africanos.

O Brasil também injetou uma porção considerável de si mesmo na África. As famílias na Nigéria levam nomes como Marinho, Pedro, Da silva, Cardoso, que são puramente de origem brasileira. Porém, a geração de hoje em dia dessas famílias não está ciente disso. Tenho primos cujo nome de família é "Alagoa". Sempre considerava o nome como sendo localmente nigeriano até que, ao chegar no Brasil, me deparei com o fato de que o nome se deriva de "Alagoas" - um estado no Brasil.

Eu tenho um filho que acabara de completar 2 anos de idade. Osaze chegou ao Brasil com 5 meses de idade. Ele gosta de passar os fins de semana indo para o Pontão para, usando a sua própria palavra, "ver o barco com samba!" Ele conhece e adora cantar a música de Araketu, de Joelma (da Banda Calypso) e de Margareth (Menezes). Ele ensaia os seus passos de dança da música brasileira de uma maneira que já vi as crianças fazerem no Rio de Janeiro e em Salvador. Osaze construiu amizades fáceis com muitos dos seus pares da mesma faixa etária: Felipe, de São Paulo; Bruno, de Sobradinho; e Tarsila, de Brasília. Eu, às vezes, indagava, ao vê-los brincar, se um teste de DNA revelaria que essas crianças têm genes comuns que derivam de uma ascendência comum de uns cem anos atrás, talvez... talvez...

Essas são fortes possibilidades. O passado se encontrando como presente e ambos marchando rumo ao futuro. O Brasil precisa saber disso. As mídias têm o dever de ajudar o Brasil a saber disso.

KAYODE GARRICK é embaixador extraordinário e plenipotenciário da Nigéria no Brasil.

N. da R.: João Ubaldo Ribeiro volta a escrever neste espaço na próxima semana.