Título: Índios no trânsito
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 24/06/2007, Economia, p. 32

Eu pensei: se eles são presidente e vice-presidente da Federação dos Índios do Alto do Rio Negro são a mesma coisa. Não posso entrevistar os dois, não há diferença entre eles. A minha ignorância foi revelada na conversa com Domingos Tukano e André Baniwa no carro pequeno em que nos apertamos para ir do hotel ao estúdio da TV Globo no caótico trânsito de São Paulo, em dia de greve do metrô.

- Quando Tukano fala, Baniwa não entende nada; quando Baniwa fala, Tukano não entende - explicou André.

Ficou mais claro meu erro quando eles me contaram a distância geográfica entre a presidência e a vice-presidência dos índios do Alto Rio Negro: um mês de viagem de barco da Aldeia Tukano, no rio Tiquié, à Aldeia Baniwa, no rio Içana. Ambos tributários do rio Negro, um dos vários rios da extensa terra alagada e de florestas que o Brasil possui, não conhece e destrói um pouco a cada dia.

São 23 etnias na federação, cada uma com uma língua diferente. Para André Baniwa chegar ao Içana, tem que ir de avião até Manaus, pegar um teco-teco para São Gabriel da Cachoeira, e barco rio acima. Com motor de potência mais forte, leva uma semana; com barco a remo, são 25 dias. Como é a logística de uma viagem assim, quanto alimento tem que levar? André disse que a comida acaba logo, e que precisam ir parando em cada "comunidade" à beira do rio.

- Entendi! Vocês vão filando bóia do vizinho - disse eu.

Os índios riram da minha interpretação. André tem leve sotaque, estudou numa escola agrícola, que lhe deu diploma de primeiro grau; Domingos, mais velho, foi educado com todos os valores da cultura Tukano pelo pai. Quando seu pai se converteu ao catolicismo, disse que ele tinha que estudar e repudiou a própria cultura.

- Estudei em Manaus e aprendi que, para ser civilizado, tinha que falar português - conta, cheio de mágoa.

O português o ajuda a representar sua tribo e a falar nos debates. Mas ele prefere falar um pouco em tukano antes da palestra em português. A língua tem uma sonoridade asiática e, no plenário, com outras etnias, só ele entendia o que ele mesmo dizia.

Para se comunicarem uns com os outros, os índios das diversas "comunidades" usam duas plataformas comuns: o português e a língua geral, um idioma criado pelos jesuítas, com raízes tupis.

- Hoje, nas tribos mais distantes, 10% da população falam o português, mas os jovens estão cada vez falando mais português - explicou Tukano, que anda pensando em ir mais além.

- Eu já chorei por não saber inglês, quando perdi um vôo na Suíça. Fiquei num canto do aeroporto, triste, até que chegou um rapaz alto e me perguntou se eu era brasileiro. Ele me ajudou a pegar o vôo de volta - contou Domingos Tukano.

Na entrevista com os dois e com Kaká Werá Jecupé, no "Espaço aberto", da Globonews, quis mostrar as diferenças de perspectivas e realidades. Kaká Werá nasceu em Parelheiros, em São Paulo, e descobriu sua identidade Tapuia mais tarde, nos contatos com os remanescentes guaranis. Os outros dois nasceram em suas tribos no extremo noroeste do estado do Amazonas e vieram para a cultura brasileira depois. Kaká Werá havia falado na palestra do Instituto Ethos sobre o tempo indígena. Uma fala elegante e eloqüente sobre a noção de tempo sem o calendário, sem prazos fatais; a orientação pelos astros naturais. Ele criou a Oca Escola em Itapecerica da Serra.

- Nela ensinamos aos professores das escolas públicas alguns dos nossos valores, porque, em todos os textos sobre índios nos livros didáticos, os verbos estão no passado - explicou Kaká.

Tukano acredita que os constituintes de 1988, quando escreveram que a terra era da União com usufruto dos índios, achavam que os índios desapareceriam.

- E estamos aumentando - lembra Baniwa.

Há vários detalhes sobre a questão indígena. De um deles tratei no programa: há 107 milhões de hectares para 270 mil índios na Amazônia.

- Não é muita terra para pouco índio? - perguntei.

Eles explicaram que usam apenas uma parte para a roça, e que o resto tem que ser preservado para os animais, para seu estilo de vida, para seu compromisso com a preservação.

O enlouquecido trânsito da volta para o hotel onde acontecia o Congresso do Instituto Ethos foi uma vantagem. Pude conversar mais com eles. Sentada atrás, no meio, entre Tukano e Baniwa - Kaká no banco da frente -, fui fazendo provocações.

- Vocês falam que preservam e tudo, mas e os casos de venda de mogno?

- Existem, temos que reconhecer que existem. Alguns índios acham que, assim, conseguem renda - admitiu Domingos Tukano.

- É por isso que temos feito contratos com empresas para a venda de produtos da aldeia. Temos que criar alternativa de geração de renda para que os jovens queiram ficar na aldeia - comentou Baniwa.

Perguntei sobre o papel subalterno da mulher nas tribos, e eles disseram que é um desafio adaptar as tradições aos tempos modernos. Perguntei sobre a universidade que sonham fazer: se as culturas e línguas são tão diferentes, que caminho terá a universidade? De novo, a resposta foi que será um desafio.

Na porta do hotel, eles pediram meu cartão e me entregaram os deles, com site e e-mail. Estavam apressados, tinham que ir até Guarulhos para começar a longa volta para casa. Com medo de perderem o avião, nem pareciam os mesmos que defenderam as virtudes do tempo indígena. O que aprendi com eles foi mais uma lição sobre a vasta e instigante diversidade brasileira. Eles me alertaram antes de sair: o conflito em torno das terras indígenas vai aumentar nos próximos anos.