Título: Com palavras, Lula substitui ação do governo
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 24/06/2007, Economia, p. 34

APAGÃO AÉREO: Governo anunciou fim da crise sete vezes, quebrou hierarquia militar e, agora, pune controladores.

Presidente faz um discurso a cada dia útil, promete muito e mantém um estilo administrativo ziguezagueante.

Nunca na história deste país um presidente falou tanto: Luiz Inácio Lula da Silva faz um discurso a cada dia útil - e são raros os que duram menos de 15 minutos.

- Eu não ia falar, mas eu vi o microfone aqui e falei: deixa eu dar uma palavrinha - sempre se justifica.

Foram 1.204 pronunciamentos em quatro anos do primeiro mandato, média de 300 por ano. E mais 160 nos primeiros cinco meses deste ano.

Lula já passou mais de três centenas de horas ao microfone - algo como um disco tocando por 14 dias, sem interrupção. (A conta se restringe aos pronunciamentos oficiais e não inclui entrevistas e nem os discursos da campanha de 2006.)

O conjunto dessa obra falada apresenta uma constante: a palavra do presidente substitui a ação do governo.

Por sete vezes nos últimos seis meses, por exemplo, Lula estabeleceu prazos para a "solução definitiva" do apagão aéreo. Em abril, no meio da crise, resolveu afagar os amotinados sargentos do controle de vôo:

- [Mandei] dizer o seguinte: "o governo não vai punir ninguém". Como o governo não vai punir mesmo, até porque longe de mim punir alguém - contou, na época.

Ao perceber a crise militar que produzira com a quebra de hierarquia na Aeronáutica, passou a condená-los e a elogiar os chefes da caserna. Na sexta-feira mandou afastar os líderes do motim.

O repúdio aos controladores de vôo, que antes afagava, foi em tom similar ao usado para se distanciar dos "companheiros" envolvidos em escândalos - como o mensalão e a compra de um dossiê contra adversários tucanos em plena campanha eleitoral: elogiou-os e, em seguida, se disse "traído", "apunhalado" por "aloprados".

"Somos uma espécie de metamorfose ambulante"

Da retórica politicamente virtuosa (sua popularidade continua alta) emerge um estilo ziguezagueante de governar, por ele recentemente justificado de uma forma paradoxal:

- Somos uma espécie de metamorfose ambulante, mudando sempre, para melhorar sempre. O que posso garantir é que eu continuo, hoje, o mesmo Lula de janeiro de 2003.

- Lula não tem compromisso com nada e nem com ninguém. Diz uma coisa hoje e pode amanhã dizer o contrário, dependendo do público - comenta o cientista político Gildo Marçal Brandão, da Universidade de São Paulo. - Lula é pura retórica. Não faz o que promete e não vai fazer, mas o seu discurso se mostra eficaz no público e isso impressiona.

No primeiro mandato, o presidente fez 121 discursos com promessas de "reformas" - um a cada 10 dias úteis. As propostas governamentais para tais mudanças permanecem desconhecidas no Congresso.

- Reformas previdenciária, tributária, agrária, política, trabalhista são inadiáveis - ele repete há 223 semanas.

Sobre reforma da Previdência, o presidente fez 69 discursos, média de três por semana no primeiro mandato. Em fevereiro, depois de 1.502 dias no poder, resolveu criar um "fórum" para debatê-la. Antes de a discussão começar, Lula semeou incerteza sobre o resultado:

- Se der certo, alguma coisa vamos mandar para o Congresso.

Outra reforma, a do sistema de tributos, simplesmente foi aniquilada semanas atrás:

- A que estava prevista no Congresso já não é mais a reforma tributária que nos interessa - anunciou.

Em tese, ainda deseja uma reforma política. Pelo menos não anulou os 33 discursos feitos nos últimos 53 meses, sobre a urgência na reorganização dos partidos e das eleições.

O pendor reformista de Lula faz historiadores como Marco Antonio Villa, da Universidade de Campinas, lembrar-se do ex-presidente João Goulart, que governou o país por dois anos e meio (de setembro de 1961 até o golpe militar de 1964).

- É o mesmo jogo do Jango com as suas "reformas de base", que nunca foram detalhadas - comenta Villa. - Com Lula é assim: depois de quatro anos e quatro meses repetindo, qual é a reforma política dele? Ninguém sabe. E a tributária? Ele anulou. A previdenciária? Não tem e nem sabe se algum dia vai ter.

Prometer, acha Lula, é um "defeito genético do político brasileiro". Julga essencial repetir as promessas "até que se torne quase que uma verdade absoluta para todos nós". E, como fazia no sindicalismo dos anos 80, quando surge um obstáculo relevante e imprevisto, maneja palavras e decreta vitória. Tem sido assim em áreas problemáticas como a Saúde.

Na eleição de 2006, decretou: "Não está longe de a gente atingir a perfeição no tratamento de saúde neste país."

Descontadas essas 17 palavras, o desalento nos corredores hospitalares continua. Lula teve notícia disso há pouco tempo dentro de casa: sua tia Corina Guilhermina da Silva, septuagenária e gravemente doente, peregrinou por 145 quilômetros tentando ser atendida em dois hospitais públicos do agreste pernambucano. No terceiro, conseguiu que lhe amputassem a perna direita.

Às vezes, o presidente se constrange com a distância entre sua palavra e a realidade. Aconteceu em 24 de novembro de 2005, quando decretou o fim das filas do INSS diante do ministro da Previdência:

- A ordem é acabar com as filas... A partir de março [de 2006], podem me cobrar!

O então ministro Nelson Machado se esquivou do compromisso público. Lula reagiu:

- Deixa eu dar um alerta para você: agora podemos afirmar que vamos terminar com a fila do INSS!

As filas continuam.

Compromissos de governo surgem e, depois, desaparecem. É o caso do Fome Zero nacional e o internacional - o primeiro apresentado no discurso de posse e o outro na ONU, em 2003.

Por ironia, essa dicotomia entre a palavra do presidente e a ação governamental é uma constatação recorrente do próprio Lula em discursos:

- Às vezes a gente toma uma decisão, passam anos e ela não acontece - repete.

O desabafo reflete um caso administrativo de difícil solução, na medida em que ele escolheu assentar seu governo sobre uma estrutura de decisões bastante complexa.

Lula é um presidente impossibilitado, por exemplo, de reunir na mesma sala todos os seus 36 ministros, indicados por 11 partidos diferentes, para ouvi-los. Se der cinco minutos para cada ministro falar, passará três horas ininterruptas apenas ouvindo.

Uma ordem presidencial, supostamente, atravessa todo o Ministério e serpenteia por uma superestrutura burocrática de 53.000 órgãos, com mais de 49.500 chefes, espalhados por 1.400 cidades.

A essas instâncias administrativas somam-se os recém-criados conselhos, câmaras setoriais e grupos de trabalho envolvendo diferentes ministérios - como os 53 em que a Casa Civil da Presidência manteve representação até o ano passado.

Em tese, todos operam com as 212 "prioridades" definidas no governo Lula, listadas no "Sistema de Informações Organizacionais do Governo Federal", do Ministério do Planejamento. A execução de cada uma depende, simultaneamente, de órgãos variados. Sobre projetos de "desenvolvimento urbano", por exemplo, opinam 26 repartições, em oito ministérios.

Nesse labirinto administrativo há dois mundos em permanente rota de colisão. Um é o de Lula, nos discursos. O outro é o do governo Lula, nas ações.