Título: O drama de conviver com o agressor
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 25/06/2007, O País, p. 3

Em Recife, estuprador é vizinho de menina e nem assim a Justiça age.

RECIFE. K. tem 5 anos. Aos 4, foi violentada por Wilson Petronilo de Sá, de 40 anos, segundo consta em inquérito na Gerência de Proteção à Criança e ao Adolescente de Pernambuco. O acusado é filho da madrinha da garota e era pessoa de confiança da família. O crime ocorreu há quase um ano, mas, até hoje, permanece impune. O criminoso mora duas casas depois da vítima, no Alto José do Pinho, Zona Norte de Recife, e passa freqüentemente em frente à residência da menina. A cada vez que ele se aproxima, a garota sente tremores e solta gritos de medo. Apesar de estar com prisão preventiva solicitada desde o ano passado, pela delegada Lúcia Fátima Gomes de Oliveira, até hoje o pedido ainda não foi analisado na Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente.

¿ A criança sente que ele é um perigo para ela ¿ afirma a bisavó da garota, de 73 anos.

A impunidade levou a aposentada à depressão e a ficar dois meses internada em um hospital público, deixando a garota, que vive com ela desde que nasceu, aos cuidados de uma tia. Hoje, a criança faz tratamento psicológico no Instituto de Medicina Materno Infantil (Imip).

A tragédia de K., que engrossa a estatística da impunidade, mostra o drama pessoal vivido por uma vítima, no caso uma criança. O setor da polícia que cuida da criminalidade contra menores tem hoje 170 policiais, 200 a menos do que em 1994. Com a redução no quadro de profissionais, o índice de inquéritos concluídos caiu de 58,2%, em 2004, para 31,4%, em 2006.

¿ Isso aqui é um caos. Não tem estrutura material nem recursos pessoais. A Gerência de Proteção à Criança é relegada a segundo plano, não há investimentos no setor ¿ afirma um delegado que pediu para não ser identificado.

O problema vai além da polícia. Segundo o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), 61% dos inquéritos envolvendo crianças e adolescentes não se transformaram em processos judiciais entre 2000 e 2003. Desde então, a situação só se agravou. Não há mais como marcar audiências para 2007 na Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente. A lenta tramitação na Justiça é outro sofrimento para as vítimas de violência sexual no estado.

¿ Depois que sofrem esse tipo de crime, elas passam por longa assistência psicológica. Mas, quando são reconduzidos à tomada de depoimentos, ficam diante de juiz, promotor, revivem todo o drama e passam por novos sofrimentos. Muitos precisam de novo de acompanhamento. O pior é que os processos levam de seis a sete anos para serem julgados, e todo o trauma volta à tona ¿ diz a advogada Karla Ribeiro.

O problema é tão grave que as últimas duas campanhas da Rede de Combate ao Abuso Sexual contra a Criança e o Adolescente abordam o tema. ¿A impunidade anda solta. E a violência sexual também. E a Justiça, por onde anda?¿, pergunta um dos textos da campanha de 2006. Em 2007, o tema se repete: ¿Justiça = Atitude. Movimente-se¿.

Em Pernambuco, a exploração sexual de crianças ocorre à luz do dia, nas rodovias e até na Praia de Boa Viagem. No interior, o problema é mais grave nas rodovias federais. Há 21 anos lidando com crimes envolvendo crianças e adolescentes, o delegado Francisco Nogueira reclama do ¿baixíssimo¿ percentual de condenação desse tipo de crime.

A coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Promotores da Infância e da Juventude, Glória Souza Ramos, reclama das sentenças do juiz da Vara de Crimes Contra a Infância e a Adolescência, Nivaldo Mulatinho. Segundo ela, o magistrado é benevolente com os crimes de natureza sexual.

¿ Ele é tendencioso no julgamento e classifica os réus de acordo com a classe social. E, especialmente no caso de abuso e exploração sexual, a tendência é absolver. A minha sensação, como promotora, é de total impotência, de revolta.

O magistrado, por sua vez, disse que suas sentenças são públicas e que cabem recurso:

¿ Não se combate a impunidade prendendo a torto e a direito. Para se prender é preciso ter critério. Prisão preventiva é coisa excepcional. Só decreto se for absolutamente necessária. Não é por uma acusação de estupro que o juiz vai decretar a prisão de alguém ¿ afirmou Mulatinho.

O delegado Nogueira discorda:

¿ O que percebo, infelizmente, é o elemento cultural entranhado em nossos valores. É um horror. As pessoas no Nordeste não têm noção da gravidade do crime de abuso sexual contra adolescentes. Homens de 30 a 40 anos acham normal se relacionar sexualmente com meninas de 12, 13 anos. O estupro é crime hediondo. E a impunidade infelizmente é muito grande.