Título: Na infância violada, a inocência é de criminosos
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 25/06/2007, O País, p. 3

18 mil sofrem violência doméstica todo dia. Condenações são raras.

Crianças e adolescentes vítimas de crimes violentos como homicídio e seqüestro, além de abuso e exploração sexual, são também vítimas da impunidade. Pesquisas mostram que investigações desses crimes estão longe de pôr seus autores na cadeia. Os processos se arrastam, em muitos casos, até 14 anos, com raras condenações, ao mesmo tempo em que cresce a violência infanto-juvenil.

Levantamento da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), que resultou no livro "Impunidade! Até quando?", mostra que, dos 24 crimes mais violentos pesquisados entre os anos de 1999 e 2000, em todo o país, 85% não apresentam qualquer solução. Desse universo, o tempo de duração do processo é de mais de dez anos (38,1%). Apenas 9,5% dos processos duraram até cinco anos.

- Ao não adotar políticas de proteção à criança e ao adolescente, o Estado se torna duplamente o maior violador dos direitos dessas pessoas, já que a pesquisa também mostra que 33% dos crimes analisados foram cometidos por agentes policiais - diz a coordenadora do grupo de trabalho sobre impunidade da Anced, Enza Mattar.

De acordo com dados da Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância (Sipani), 12% das 55,6 milhões de crianças menores de 14 anos são vítimas de alguma forma de violência doméstica por ano no país. Uma média de 18 mil crianças por dia.

No caso da exploração sexual, o descaso com as investigações é semelhante. Depois de analisar 80 casos entre 2004 e 2006, a Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso verificou que em apenas 55 chegou-se a formalizar inquéritos. Desses, apenas 18 continham informações suficientes sobre o andamento do processo, e registrou-se apenas uma denúncia. Também não há informação sobre condenações.

- O que muitas vezes acontece é o processo de dupla vitimização. Imagine o que é uma criança de dez anos, que sofreu violência sexual, ter que ficar prestando depoimentos reiteradas vezes para falar sobre o caso. É outra violência - diz a coordenadora da Frente Parlamentar pelos Direitos da Criança e do Adolescente, senadora Patrícia Saboya (PSB-CE).

Nos casos em que há condenação, poucos são mantidos presos. Um dos casos mais recentes é de Porto Ferreira (SP), onde a polícia prendeu em 2003 um grupo de 12 pessoas, entre vereadores e empresários, acusados de aliciar menores de 13 a 16 anos para participar de orgias. Embora alguns acusados tenham pegado 45 anos de prisão, ninguém está na cadeia.

Condenado a 45 anos em primeira instância, o vereador Luiz César Lanzoni teve a pena reduzida para dez anos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cumpriu 39 meses e, em 2005, reelegeu-se pela terceira vez vereador na cidade, onde cumpre atualmente o seu mandato. Ele nega "qualquer ato lascivo contra as meninas".

A pesquisa do Anced reforça uma constatação do início dos anos 90, quando um levantamento na cidade de São Paulo mostrou que, de 622 crimes cometidos contra crianças e adolescentes, apenas 1,72% chegou à condenação. Do total, 184 foram arquivados ainda durante a elaboração do inquérito e 25 continuavam sem resposta até cinco anos depois do crime.

- A evolução desses números mostra que a proteção da criança e do adolescente não tem sido prioridade - diz a socióloga Myriam Mesquita, ex-colaboradora do Unicef responsável pela pesquisa.

Entre as vítimas dos assassinatos estudados, 69% viviam com a família e 49,5% tinham ocupação. Os números só não são maiores porque, em muitos boletins de ocorrência, a idade foi registrada como "mais ou menos 18 anos", e esses casos foram descartados.

- A impunidade ganha força com a demora na elaboração de inquérito, que chega a seis meses, na maioria dos casos. Nesse período, testemunhas desaparecem, a família começa a ser ameaçada e adota a lei do silêncio para proteger outros filhos - diz Myriam.

Investigar crimes contra crianças e adolescentes ainda é difícil para as autoridades policiais, analisa a coordenadora do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo (USP), a psicóloga Nancy Cardia.

- As investigações são capengas, mal elaboradas desde o início. Tem sido mais comum dar prosseguimento a casos de flagrante do que buscar autores, já que há um número excessivos de casos. Além disso, os processos ora estão com um delegado, ora com outra equipe, e se perdem no caminho. A impunidade tem feito com que a sociedade reaja à sua maneira em busca de soluções - diz ela, referindo-se às decisões isoladas de acompanhamento do processo.

- Quem é mais esclarecido ou tem mais oportunidade monta uma ONG, contrata advogados. Mas quem não tem recurso algum faz o quê?