Título: No Ceará, dez casos-chave de violência contra crianças aguardam julgamento
Autor: Martin, Isabela
Fonte: O Globo, 25/06/2007, O País, p. 4

Acusados são políticos, religiosos, familiares e empresários bem-relacionados.

FORTALEZA. Em Tauá, a 345 quilômetros de Fortaleza, o desfecho de um caso de exploração sexual contra duas crianças com menos de 12 anos e duas adolescentes com menos de 14 revela como a visão preconceituosa de juízes pode favorecer a impunidade e aumentar a agressão às vítimas. Cinco comerciantes foram denunciados à Justiça por exploração sexual. As crianças confirmaram a denúncia ao Conselho Tutelar e o exame realizado por ginecologistas comprovou que elas tinham sido vítimas de violência sexual.

Os cinco comerciantes foram presos; as vítimas e suas famílias, encaminhadas ao Núcleo de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes. O caso teve enorme repercussão. Os agressores, bem relacionados, ganharam até um abaixo assinado de moradores. O documento culpava as vítimas e suas famílias.

Juiz considerou "duvidosa" a inocência e pureza de vítimas

A sentença em primeira instância, publicada em março do ano passado, absolveu os acusados e revelou o freqüente julgamento a que são submetidas vitimas de violência sexual. O juiz usou a condição social miserável das menores para culpá-las e inocentar os agressores. Um de seus argumentos foi de que elas já viviam na rua e tinham experiência sexual. Na sentença, escreveu que "a vida pregressa das mesmas era anormal à vida em sociedade" e considerou ser "duvidosa a inocência e pureza das vítimas". Depois, concluiu que, "na incerteza quanto à vida sexual das vítimas, vigora o princípio da presunção de inocência, posto que não vai interessar, in casu, se houve ou não penetração, ejaculação, etc."

A promotora Edna da Matta achou o argumento do juiz preconceituoso:

- No Brasil há duas classes e dois direitos. Para mim, o direito de proteção é um só.

A promotora também critica o fato de o juiz presumir que, por já terem sido exploradas anteriormente, as meninas são experientes e têm condições de decidir sobre o próprio corpo:

- Ao fazer esse julgamento, o juiz está vitimizando duplamente as crianças.

No Ceará, há pelo menos dez casos emblemáticos de violência contra crianças e adolescentes que aguardam julgamento, todos em municípios do interior. Os acusados são políticos, religiosos, familiares e empresários. Na maioria das vezes, a importância social dos réus é o motivo dos processos não resultarem em punição. A relação das denúncias foi entregue ao governador do Ceará, Cid Gomes (PSB), durante uma audiência pública na Assembléia Legislativa em maio, junto com um pedido de providências.

Em Santana do Acaraú, o acusado de abusar sexualmente de meninas de 9 a 16 anos é um frade. Desde que ele foi denunciado, as vítimas sofreram pressões e humilhações por parte de moradores da cidade e acabaram sendo agredidas verbal e fisicamente. O caso ainda não foi julgado. Há notícias de que algumas vítimas se mudaram e outras até já se casaram.

Pai vive com filha desde que ela tinha 12 anos; têm 2 filhos

Em Milagres, o acusado é um ex-prefeito. Em Guaramiranga, um promotor de Justiça. Em Beberibe, o pai vive maritalmente com a própria filha desde que ela tinha 12 anos. Ela já teve dois filhos. O caso foi levado a julgamento e o acusado foi absolvido porque o juiz alegou que a adolescente, na época com 15 anos, já tinha maturidade suficiente para discernir sobre a situação.

Para a coordenadora do Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Márcia Oliveira, a impunidade é o maior entrave nesse tipo de trabalho. A entidade recebe por ano cerca de 30 denúncias. E muitos casos não são denunciados porque o agressor é o pai.

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