Título: Jogo de cena
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Globo, 25/06/2007, Opinião, p. 7

Não se iluda. O suposto rompimento do MST com o governo Lula é mero jogo de cena. Se não fosse, o financiamento dessa organização política seria cortado, a lei relativa à não desapropriação das terras invadidas seria cumprida e o Incra e a Funai seriam desaparelhados. Enquanto isso não ocorrer, trata-se apenas de desavenças internas, próprias de um casamento cujos cônjuges têm uma visão diferente no que diz respeito à radicalização do processo político. Nada que conduza a um divórcio.

Há um modo único de operação nas ações do MST, CPT, Comissão Missionária Indigenista, Fundação Palmares e PT, coordenados com o Incra e a Funai. De um lado, temos os ditos "movimentos sociais", apoiados pelo PT, e, de outro, os órgãos do Estado, aparelhados pelo próprio PT e por esses mesmos "movimentos". Estabelece-se uma sincronia de atividades que responde a uma mesma agenda política. Sob essa ótica, o Incra e a Funai funcionariam, dentro do mesmo Estado, como respondendo a uma "causa", consistente em voltar-se contra a iniciativa privada, a economia de mercado e o estado de direito.

Por exemplo, há "vazamentos" de que os "índices de produtividade" deverão ser revistos. O presidente não estaria cumprindo a sua "promessa" de campanha. Novas invasões serão provavelmente feitas segundo os novos critérios. Anuncia-se, ao mesmo tempo, que o Incra já possui estudos que atualizam os índices de produtividade, estabelecendo regiões prioritárias para assentamentos. O mesmo ocorre com a Funai, onde os "estudos" antropológicos são concomitantes às invasões e às propostas de "portarias". Os "índios" invadem as propriedades, com o apoio da Comissão Missionária Indigenista e do MST, criando o problema que é, então, apresentado à mídia como uma luta entre uma grande empresa e os pobres injustiçados por uma exploração de 500 anos. Exemplos do mesmo tipo poderiam ser apresentados no que diz respeito às quilombolas, à Fundação Palmares, ao Incra e às invasões.

Há um único roteiro. Vejamos os seus passos: a) o primeiro consiste na determinação do alvo a ser atingido, segundo uma decisão que envolve o PT, as pastorais da Igreja (CPT e a Indigenista), o MST, setores da CUT e os órgãos do Estado (Incra e Funai); b) o segundo consiste em que tal decisão só pode ser possível por envolver pessoas que defendem a mesma causa. Ocorre o aparelhamento do Estado pelo PT e por esses movimentos sociais, sem o que não poderia haver tal sincronia; c) o terceiro se desdobra em dois: o do estudo de um lado e o das invasões e congressos do outro, de tal maneira que esses dois lados da mesma moeda apareçam para a opinião pública como se fossem distintos; d) o quarto reside em notícias que são plantadas ou vazadas para os jornais, segundo as quais há estudos em andamento que mostram a injustiça vigente numa determinada área tanto geográfica quanto social, racial, indígena ou de meio ambiente. Simultaneamente a essas notícias começam as invasões que comprovariam a veracidade dos estudos; e) o quinto é o da apresentação da "questão social" assim criada, que captura adesões na opinião pública, de modo que se crie uma legitimidade tanto para a publicação da "portaria", que regulariza tal problema em nome da justiça social, quanto para as invasões; f) o sexto se traduz pelo começo de três relativizações da propriedade privada: as funções social, racial e indígena. A propriedade privada é, então, relativizada em virtude dos problemas sociais, raciais e indígenas do campo e das cidades. O seu resultado reside nos processos de desapropriações, dependendo do caso, com ou sem indenizações; g) o sétimo é o do comparecimento do Estado como instância capaz de equacionar os problemas sociais, cumprindo, assim, com a sua finalidade distributiva. Intervém o imaginário do resgate de uma "dívida histórica", o que tende a ser bem aceito pela população, já capturada por essas idéias; h) o oitavo consiste no fortalecimento dos movimentos ditos sociais, que ganham para si uma parte deste financiamento, continuando com suas atividades. Cabe salientar que essas organizações políticas se legitimam para novas invasões e novos financiamentos, fortalecendo-se enquanto organizações, num círculo vicioso que se repete indefinidamente.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.