Título: Mudar pra quê?
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 27/06/2007, O País, p. 4

O presidente Lula precisou de nove meses para descobrir que, sem o respeito à hierarquia, o nosso sistema de tráfego aéreo não poderia funcionar, pois é todo ele militarizado. Passar o serviço para a esfera civil é uma tarefa delicada, que teria de ser feita dentro de um planejamento que envolvesse a própria Aeronáutica, isso se ficasse claro que assim ele funcionaria melhor. Mas, no estilo ziguezagueante tão bem demonstrado na reportagem de José Casado no GLOBO de domingo, a primeira reação de Lula foi deixar pulsar sua veia sindicalista, desautorizando os chefes militares e fazendo acordos com os sargentos amotinados, como se fosse muito esperto e soubesse resolver as pendências na base da lábia.

Não cumpriu nenhuma das promessas feitas e, depois disso, deu diversos ultimatos aos amotinados, até autorizar a Aeronáutica a fazer "o que seja preciso" para resolver a situação. É claro que nada se resolverá a curto prazo, mesmo por que nesses nove meses nenhuma medida foi tomada para solucionar os problemas, seja compra de novos equipamentos, seja treinamento de controladores em número suficiente, seja a elaboração de plano de emergência.

Desde que assumiu o governo, em 2003, Lula parece que está aprendendo a governar, e somos as cobaias de seu treinamento "on the job". Como nunca quis ser outra coisa que não presidente da República, Lula assumiu sem antes ter passado por uma mísera prefeitura, sem ter, portanto, a menor idéia do que é ser administrador. E segue fazendo seu aprendizado, mudando de opinião como quem muda de camisa, dizendo uma coisa hoje, fazendo outra amanhã. Seu melhor projeto de governo é não ter colocado em prática o projeto petista de governar.

Na fase atual, Lula critica os ambientalistas e anuncia que o governo construirá Angra 3, mostrando outra vez a esquizofrenia de seu governo. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que continua onde sempre esteve, fez críticas públicas à decisão do governo, o que indica que, permanecendo à frente do ministério, o Ibama vai dificultar ao máximo a licença ambiental para a retomada do projeto nuclear.

Em 2004, escrevi uma coluna cujo título era "Herança maldita", destacando algumas das contradições do governo até ali. Lembrava que o PT votara contra o Fundef, que mudou radicalmente o ensino fundamental no país. Hoje, uma das grandes vitórias que o governo canta é a criação do Fundeb, uma ampliação do programa anterior tão criticado.

O PT votou também contra a criação da CPMF, e hoje é tão imprescindível para fechar as contas públicas que o próprio governo petista quis transformá-la em permanente numa tentativa de reforma tributária ainda na gestão do ex-ministro Antonio Palocci.

Votou também contra a Lei de Responsabilidade Fiscal; contra a reforma da Previdência; contra a privatização das telecomunicações, entre muitos outros votos negativos, e hoje é a favor de todas elas, ou ao menos da maioria. As privatizações voltaram a ser demonizadas na campanha da reeleição, embora as Parcerias Público-Privadas sejam maneira de mascarar as privatizações em setores que não têm condições de progredir sem investimentos privados, pois o governo não tem recursos.

E até mesmo algumas privatizações já foram autorizadas, como a que permite a empresas privadas nacionais e estrangeiras explorar madeira na Amazônia. Uma lei aprovada por todos os partidos, inclusive o PSDB, e que burramente o candidato tucano Geraldo Alckmim, em vez de apoiar, denunciou como sendo um erro. Mais esquizofrênico que o governo Lula só mesmo o PSDB na oposição, que consegue acusar seu adversário de ter adotado suas políticas.

As terceirizações no serviço público, outro ponto que era muito criticado pelo PT, seriam transformadas em contratações de pessoal de carreira. Pois aumentaram as contratações e também as terceirizações. Há desculpas para todos os gostos nesse período em que o PT redesenha sua rota política. O senador Aloizio Mercadante e o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foram os precursores, ao admitirem que o PT errou ao não apoiar as reformas no governo de FH. Lula, que já esclarecera anteriormente que nunca fora de esquerda, fez a crítica dizendo que a esquerda é "muito conservadora" quando se trata de reformar o Estado.

O presidente admitiu publicamente que só dá para fazer bravatas quando se está na oposição, numa aceitação da crítica de que o PT passou os últimos anos prometendo coisas que, chegando ao governo, não pode realizar. Mas Lula tem razão de não se preocupar com essas aparentes incongruências, ou talvez essa "banalização do erro" seja a expressão mais visível de seu decantado humanismo, e faça com que ele se identifique com a maioria da população. Afinal, é uma "metamorfose ambulante", como se define.

Apenas o seu carisma pessoal, juntamente com a situação econômica mundial - que estamos aproveitando graças ao bom senso de dar continuidade às políticas macroeconômicas iniciadas no governo anterior, e até mesmo aprimorá-las em alguns casos -, pode explicar a persistência de sua popularidade em meio a tantos descalabros administrativos e morais de seu governo.

Na pesquisa divulgada ontem, o descolamento entre o senso moral predominante na população e sua aprovação está explícito quando se revela que 70% da população acham que o caso de seu irmão Vavá foi "negativo" para o governo; 75% acreditam que Vavá estava mesmo fazendo negócios por ser irmão do presidente, e 52% acham que Lula sabia do que estava acontecendo. No entanto, sua aprovação continua estável, na faixa excepcional de 64%. Por que Lula mudaria ?