Título: Uma câmara de tortura em Gaza
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 28/06/2007, Opinião, p. 7

¿Oretrato de Arafat foi arrancado da parede do escritório e destruído sob as botas dos guerreiros islâmicos do Hamas. A bandeira palestina foi baixada, e o estandarte verde do Islã tomou seu lugar. A destruição pelo Hamas do movimento Fatah em Gaza sintetizou a mudança que se difunde pelo Oriente Médio. O nacionalismo secular do tipo do Fatah começa a parecer a força fraca e o Islã radical, a força forte.¿ A narrativa, que está no editorial da revista ¿The Economist¿, afigura-se clara como o sol que bate no deserto, oferecendo a imagem de dois pólos em conflito irredutível e sugerindo um método de interpretação da dinâmica política no mundo árabe. Mas ela condensa os equívocos que guiam a política do Ocidente no Oriente Médio.

A fonte oculta do editorial é o historiador Bernard Lewis. O ¿príncipe dos orientalistas¿ definiu seu paradigma há mais de meio século, quando estudou os arquivos do Império Otomano. Desse mergulho no Islã medieval e moderno emergiu a convicção de que há algo de fundamentalmente errado na cultura muçulmana. Mais tarde, fiel à sua chave interpretativa, ele cunhou a expressão ¿choque de civilizações¿, que seria apropriada por Samuel Huntington e convertida em plataforma política dos neoconservadores americanos.

Sob a perspectiva de Lewis, Islã e Ocidente configuram entidades definidas pela cultura, e a salvação do primeiro residiria na negação da sua ¿essência¿, pela adoção dos valores do segundo. Na obra ¿A emergência da Turquia moderna¿, que aborda o colapso do califado, o orientalista desenha um caminho evolutivo baseado na revolução de Kemal Ataturk, o fundador da república turca e um ardente ¿ocidentalista¿. Não é fortuito que, na hora da invasão americana do Iraque, o neoconservador Paul Wolfowitz invocasse o espectro de Ataturk ao apresentar a Turquia como ¿um modelo útil para outros no mundo muçulmano¿.

¿A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico.¿ A fórmula de Lewis supõe a existência singular de um ¿pensamento islâmico¿ e pretende contrapor seu arcaísmo à modernidade ocidental inaugurada pelas Luzes. A perversão intelectual do orientalismo encontra nessa idéia a sua epítome. A doutrina do direito de resistir não emanou magicamente na filosofia das Luzes, pois já estava contida numa tradição enraizada no primeiro cristianismo. O Islã original também expressou a legitimidade da revolta. No Corão, está escrito que é obrigação do fiel ¿combater pela causa daqueles que, por serem fracos, são homens, mulheres e crianças maltratados (e oprimidos), e clamam a Nosso Deus que os resgatem dessa cidade dos opressores¿.

Intelectuais podem ser mais perigosos que generais. Quando as Torres Gêmeas caíram, Lewis declarou que o 11 de setembro representava ¿a sirene da batalha final¿, uma avaliação que é compartilhada por Osama bin Laden, e entregou-se à produção de uma série de colunas clamando pela guerra no Iraque. O ¿Wall Street Journal¿ crismou a política da administração Bush no Oriente Médio como a ¿Doutrina Lewis¿. O Iraque seria uma ¿segunda Turquia¿, inventada pelos guerreiros do Ocidente que, na falta de um Ataturk, introduziram o embrião da democracia no centro do mundo árabe-muçulmano.

O funcionalismo abomina a história e substitui a complexidade da política pelo jogo maniqueísta de ¿essências¿ em confronto. O seu ácido dissolve tudo que não se encaixa na narrativa das ¿guerras de cultura¿. Mas, sob a lógica dos seus esquemas, como explicar que a Turquia só começou a se tornar uma democracia muito recentemente, e depois que se formou um governo oriundo do movimento islâmico? Ou como entender o Iraque atual, onde as forças dos EUA sustentam um governo vertebrado no fundamentalismo xiita e enfrentam uma resistência cujo eixo são os nacionalistas seculares sunitas?

Depois de assumir o controle da Faixa de Gaza, o Hamas abriu à visitação pública uma célebre prisão e câmara de tortura mantida desde os tempos de Yasser Arafat. Na época, a segurança do território era comandada por Mohamed Dalan, uma figura que construiu estreitas conexões com os serviços secretos americanos e israelenses. Quando os palestinos derrotaram nas urnas o Fatah, elegendo uma maioria do Hamas, eles não estavam cerrando fileiras com o fundamentalismo islâmico, mas abandonando o regime corrupto e violento de Mahmoud Abbas.

Não há lugar na ¿Doutrina Lewis¿ para essa constatação antiessencialista. Hoje, o Ocidente se engaja na operação de isolamento da Faixa de Gaza. A punição coletiva aplicada aos palestinos de Gaza só pode ativar as fontes do desespero que fabricam os ¿mártires¿. É um modo perverso de provar, contra as evidências, que Lewis sempre esteve certo.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.