Título: Vários brasis
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 28/06/2007, Economia, p. 24

O Brasil vive grave crise institucional. O Senado se dissolve diante dos eleitores pela incapacidade de fazer a coisa certa: punir quem feriu o decoro. Na economia, há setores que vivem boom: empresas capitalizadas na Bolsa estão aumentando seus investimentos. Os indicadores macroeconômicos nunca estiveram tão bem. No Rio, no Alemão ontem, foram, pelo menos, 18 mortos e, nesta semana, os tiroteios pararam até o aeroporto. Há vários brasis no atual Brasil.

A economia privada, fortalecida pelos acertos na política macroeconômica e pelos seus próprios esforços, quer decolar. As chances parecem únicas: a economia está estabilizada; há excesso de liquidez externa; o consumo interno está aumentando em várias áreas; o capital estrangeiro aposta em setores diversos (o Investimento Direto Estrangeiro acumulado em 12 meses fechou abril em US$24 bilhões; US$10 bi a mais que no mesmo mês em 2006); o varejo animado aguarda o segundo semestre, que normalmente é o melhor momento do ano.

No Congresso, o espetáculo é desalentador. As explicações dadas pelos políticos apanhados em situação comprometedora desrespeitam a inteligência das pessoas. A rocambolesca história do senador Joaquim Roriz e sua meia bezerra paga com meio cheque de outra pessoa é completamente estapafúrdia. Certos políticos parecem pensar que somos bobos para aceitar suas explicações pedestres. Roriz pode comprar meia bezerra, o que não pode é pagá-la de forma tão obscura. Ele pode pedir um empréstimo ao um amigo com quem vai à missa, mas, de preferência, que ele não seja um concessionário de serviço de transporte público no Distrito Federal, que governou duas vezes. Que o cheque não seja descontado no banco que, por oito anos, esteve sob seu comando.

A Câmara aprofunda a crise ao insistir numa reforma política que aumenta a distância entre o eleitor e seu representante. A hesitação dos senadores, do governo e da oposição, no caso Renan, informa que o comportamento do presidente da casa é considerado rotina no Legislativo.

Em alguns momentos desta crise, o presidente do Senado quis se confundir com a instituição. Tentava passar a mensagem de que qualquer punição que caísse sobre ele representaria um risco para o Senado. É o oposto. O risco é não punir o senador Renan Calheiros. E institucionalizar a quebra do decoro. O Congresso já se divorciou da opinião pública de forma dramática.

As duas casas estão trabalhando em consórcio: o Senado aprofunda a decepção do eleitor, a Câmara tenta tirar do eleitor o poder de escolha. O Senado exibe um espetáculo lamentável de erros e desordem; a Câmara informa que os velhos líderes partidários, responsáveis por este momento, devem ser fortalecidos. O eleitor quer mais clareza na relação entre empreiteiras, fornecedores do setor público e políticos, e a Câmara oferece a solução de aumentar o já alto financiamento público de campanha e proibir o financiamento privado. Elementar: as contribuições continuarão existindo por debaixo do pano. Teremos menos, em vez de mais, transparência.

O senador Renan Calheiros fala em "esquadrão moral" e ataca um inimigo em particular: a imprensa. Seu pior inimigo foi ele mesmo, quando aceitou que o pagamento de uma conta particular sua fosse feito através do lobista de uma empreiteira. Se o dinheiro era mesmo dele e Cláudio Gontijo foi só o intermediário, é um caso para pôr no livro Guinness. Nunca antes na história das relações entre empreiteiras e políticos, um senador inocente fez melhor escolha para parecer culpado. Mas, se esse episódio já estivesse pacificado, restariam as muitas sombras sobre os negócios agropecuários do senador.

Enquanto isso, no mundo dos negócios, a venda de caminhões cresce 18% e as fábricas já estão com listas de espera; veículos leves crescem 5%, mas sobre uma base já elevada; o consumo das famílias cresce há 14 trimestres. O setor de shopping centers está em plena expansão: dos shoppings já consolidados, 40% se expandem. Além dos 621 shoppings já existentes, há 60 outros em construção no país. As vendas de computadores continuam ainda em pleno boom. Há esses e muitos mais dados vigorosos na economia.

Por outro lado, há uma completa ausência de agenda para pavimentar o crescimento sustentado: não existem propostas de reformas, os investimentos para superar os gargalos logísticos não acontecem, a carga tributária continua alta, não há qualquer estratégia para lutar contra a avassaladora informalidade do país. O caos aéreo, dia sim, dia não, atormenta os viajantes e retira produtividade da economia. A violência urbana produz cenas de país em guerra cotidianamente no Brasil.

Quanto tempo podem conviver tantas realidades diferentes num mesmo país? Uma economia pode ir bem, num clima de guerra urbana, caos logístico e crise institucional? Pode a economia se descolar do governo e dos políticos e continuar empurrando o Brasil? São essas as perplexidades deste tempo confuso.