Título: Liberdade para o Alemão
Autor: Duarte, Mário Sérgio de Brito
Fonte: O Globo, 29/06/2007, Opinião, p. 7

Nos últimos vinte anos a escalada da violência, perpetrada por criminosos envolvidos com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, tem preocupado tanto o cidadão comum quanto estudiosos, governantes, jornalistas e agentes da lei. Os efeitos do descontrole histórico da segurança pública são tão dramáticos, que já não podemos dizê-los próprios de tal campo. Uma observação atenta ao que se tem passado em nosso estado, com destaque para as áreas onde estão localizadas as favelas, irá revelar que a evolução do medo abarca alguns vetores comuns aos "conflitos armados", semelhantes aos ocorridos em países e territórios envolvidos em guerras internas, com significativo número de mortos entre contendores e inocentes. No caso carioca, cuja cidade até o início da década de 80 ainda apresentava uma regular normalidade no seu aspecto segurança, uma combinação explosiva de fatores foi determinante para a proliferação de criminosos em nova faceta. A vulgarização da cocaína, conquistando mercados nas camadas mais pobres da população, fermentada pela chegada dos fuzis e outras armas de guerra, promoveu, duplamente, grande lucro e poder para as quadrilhas que se formavam. Em pouco tempo, desavenças internas nos bandos deram origem a dissensões e disputas por áreas rentáveis, ocasionando conflitos armados que exigiam pronta resposta dos organismos policiais, em defesa dos moradores, acuados entre o fogo cruzado dos marginais. Entretanto, despreparadas e desautorizadas, as polícias nunca conseguiram empreender campanha efetiva para prevenção do caos que se avizinhava, concorrendo para que a segurança pública servisse muito mais como ingrediente para confeitos políticos sedutores em época de eleição, e não como objeto real das preocupações dos gestores, exercendo, assim, por inação, papel definitivo para transformá-la num macroproblema. Por anos, seu enfrentamento, aceitando o desafio de desgastes e danos colaterais, foi postergado, e um sem-número de experimentos para controle da criminalidade foi testado a partir de fórmulas excêntricas, idealizadas por intelectuais ancorados em curiosa episteme sociológica, de tudo explicar pelas desigualdades sociais. Assim, chegamos aos nossos dias mergulhados numa desordem aterradora, cuja solução só será possível pela realização de esforços conjugados dos poderes legais e legítimos, e da população, a partir de uma visão realista da gravidade da situação e dos ingredientes psicossociais que lhes compõe o quadro. Primeiramente, é preciso reconhecer que os bandos possuem instrumentos de guerra, como fuzis, granadas e minas; também, que sabem se conduzir como pequenas frações de infantaria, o que inclui "conduta de patrulha", evacuação de feridos e uso de radiocomunicação; que se estabelecem estrategicamente no terreno, dominando-o e mantendo o controle da população; que utilizam o terror como forma de intimidação, assassinando, fria e barbaramente policiais, adultos e crianças inocentes, imolando, esses últimos, em ônibus que incendeiam, com indiferença bestial. Além disso, nos últimos anos desenvolveram uma odiosa identidade cultural que inclui: músicas louvando terroristas internacionais e seus feitos; assassínio - com tortura e secção de membros do corpo dos "inimigos", ainda vivos, para alimentar animais famintos; homicídio de desafetos e "suspeitos" em pneus incendiados, macabramente apelidados por "microondas"; uso de expressões, gestos e palavras provocativas com identidade de grupo, francamente reveladas pelos sites de socialização da internet, principalmente o Orkut, onde se exibem ao lado das cabeças decapitadas dos inimigos.

Sem dúvida, vivemos um conflito urbano armado. É menos do que uma guerra convencional, mas é muito mais do que um simples quadro de ordem pública que possa ser tratado com instrumentos tradicionais. Para enfrentá-lo, precisamos bem mais que aplicar modelos de policiamento ostensivo importados do exterior, pois não condizem com nossa realidade. Se quisermos modificar, definitivamente, essa realidade, devemos aceitar o desafio sem receios, e libertar, ainda que com o "uso da espada", a população das garras do crime, como estamos fazendo no Complexo do Alemão, livrando-a do horror. Se quisermos ter a consciência tranqüila, livre do arrependimento comum aos que se escondem em falácias sedutoras, com as quais camuflam inépcia e incompetência, temos de ousar a liberdade, ainda que chorando a dor dos que ofereceram a própria carne ao encontro do aço, como fizeram os policiais que lá tombaram nesses últimos meses, regando com sangue e honra o solo, para a semeadura da paz. O Complexo do Alemão será liberto. Ele pertence ao Rio. Ele pertence ao Brasil.

MÁRIO SÉRGIO DE BRITO DUARTE é tenente-coronel PM, ex-comandante do Bope.