Título: O foro privilegiado tem que acabar
Autor: Carvalho, Jailton de
Fonte: O Globo, 02/07/2007, O País, p. 4

Para ex-procurador-geral, todos devem ser julgados na primeira instância.

Para o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, a impunidade de políticos e juízes, entre outros, que o GLOBO vem mostrando nas últimas semanas tem nome: lei do foro privilegiado. Fonteles defende o fim da lei que permite tratamento diferenciado a políticos e magistrados em processos criminais. Ele entende que, do cidadão mais simples ao presidente da República, todos devem ser julgados por juízes de primeira instância e sob as mesmas regras.

Jailton de Carvalho

Por que nas prisões brasileiras só há negros, pobres e desvalidos?

CLÁUDIO FONTELES: Como dizia o professor José Antônio Fragoso, o direito penal no país incide sobre três "p": pretos, pobres e prostitutas. E isso ainda existe. É claro que, a partir de 2003, você começa a notar no Brasil uma certa diferença. O Ministério Público Federal passa a ter uma forte presença no campo criminal até das elites. Você vê várias ações penais acontecendo perante as cortes superiores, o que quase não existia antes de 2003.

Mas as distorções permanecem. Qual o motivo?

FONTELES: O primeiro ponto: a prerrogativa de função. Num sistema democrático republicano, ninguém tem que ser julgado por colegiados superiores. Todo ser humano, do homem mais simples ao presidente da República, se pratica um delito, tem que ser julgado por um juiz criminal, de primeiro grau, onde tudo começa. Esse juiz é, originalmente, vocacionado para o trabalho da avaliação em torno dos fatos. Nas supremas cortes (STF e STJ), de membros colegiados, a vocação não é de buscar os fatos. Nessas cortes maiores, os magistrados têm os fatos por imutáveis e vão aplicar o direito aos fatos. O magistrado numa corte superior não está vocacionado para pesquisar fatos. Está, sim, vocacionado para aplicar o direito sobre fatos já pesquisados.

O senhor defende mudanças na lei do foro privilegiado?

FONTELES: Sem a menor dúvida, ampliar o foro privilegiado é uma barbaridade, como estavam tentando fazer. O Supremo derrubou uma tentativa, feita no final do governo Fernando Henrique, de modificar o Código de Processo Penal. Essa mudança foi inconstitucional. Agora, querem voltar a colocar isso na Constituição. Ou seja, estender o foro privilegiado até para quem já deixou o cargo. Isto é um absurdo.

Quem o defende são pessoas que cometem crimes e querem o benefício do foro?

FONTELES: Que cometem crimes e sabem que, nas cortes superiores, os processos são demorados. Tanto que vocês da imprensa têm mostrado que não se chega a definição alguma nessas ações penais.

O que mais tem contribuído para a impunidade ?

FONTELES: A prescrição penal neste país. Os advogados vão alongando a definição das questões criminais por excesso de recursos. Quando há definição, o crime já está prescrito. O decurso do tempo é a causa para extinguir processos. Há países anglo-saxônicos onde é inimaginável acontecer isso. Mesmo em crimes não tão graves. Lembra-se do Ronald Biggs? Qual foi seu crime? Assaltar o trem pagador. Esse crime na Inglaterra é imprescritível. No Brasil, não. Trabalha-se com a prescrição, enorme aliada da impunidade.

Quantos tipos de recursos existem?

FONTELES: É uma enormidade. Tem embargo, agravo...

Antes de deixar o governo, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos queria reduzir esses recursos, mais de 40, para três ou quatro...

FONTELES: Ele estava coberto de razão. Outro dia houve um parecer aqui que era assim: embargo de declaração em desembargo de declaração em agravo nominal em agravo de instrumento num recurso extraordinário. Isso é brincadeira! Agora, claro, o advogado criminalista é pago para isso. O criminoso do colarinho branco pode pagar e paga para ele não deixar o processo finalizar. Isso tinha que ser eliminado. Falta seriedade e vontade legislativa para cortar esse cipoal de recursos.

O fim da impunidade é possível? Quando criminosos ricos vão para a cadeia?

FONTELES: Olha, já tem alguns. Rocha Mattos (juiz federal de São Paulo) está preso. Agora não podemos estancar isso (a cobrança pelo fim da impunidade). Por outro lado, é um movimento incipiente. Para que se cristalize, vai levar dez ou quinze anos.