Título: Embate da cúpula católica com o governo Kirchner
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 01/07/2007, O Mundo, p. 33

Igreja chegou a ceder propriedade para ser usada como centro clandestino de detenção, afirma livro.

O inédito julgamento de um sacerdote católico acusado de cumplicidade em crimes da ditadura militar vai expor a dimensão da ¿sagrada aliança¿ entre bispos e generais. E isso tende a agravar as já tensas relações entre a liderança da Igreja Católica e o governo Néstor Kirchner.

Esse embate político ultrapassa o resgate de um passado obscurantista e alcança o centro da singular relação institucional do Estado argentino com a Igreja Católica. Ela foi reforçada pelo regime militar, que até inscreveu cardeais, bispos, padres e seminaristas na folha salarial do serviço público. O Tesouro argentino paga o equivalente U$100 por seminarista e US$3 mil por cada bispo diocesano.

Com freqüência o presidente tem sugerido cumplicidade por ¿omissão¿ do episcopado. O cardeal primaz Jorge Bergoglio, presidente da Conferência Episcopal, passou à ofensiva:

¿ O demônio não se aquieta, é o pai da mentira, da divisão, da discórdia, da violência ¿ disse em homilia recente, dedicada ao governo.

Kirchner retrucou:

¿ Há um Deus e é de todos, não é de alguém em particular. Mas, cuidado! O diabo também chega a todos, tanto a nós, que usamos calças, quanto aos que usam batina.

Aos 70 anos, o jesuíta Bergoglio tem sido questionado quase diariamente, e em público, sobre as relações ocultas da Igreja com os militares. Está, por exemplo, no centro de episódios singulares. Um deles é a suposta participação no interrogatório de dois subordinados, os padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, que foram seqüestrados e torturados em 1977.

Bergoglio teria feito jogo duplo, denunciando religiosos

Em livro recente (¿El Silêncio¿, Editora Sudamericana), o jornalista Horacio Verbitsky mostra Bergoglio em um constante jogo duplo com o regime militar, a partir de documentos governamentais. Ele estimulava o trabalho de padres alinhados à corrente defensora da Teologia da Libertação e, a seguir, os denunciava como subversivos. Enquanto isso, o chefe dos capelães militares, Emilio Graselli, acertava com oficiais detalhes de um programa de ¿reeducação¿ de presos políticos.

É de Verbitsky a revelação de uma das mais insólitas iniciativas da cúpula episcopal na cooperação com o governo militar: permissão para a instalação de um ¿Centro Clandestino de Detenção¿ ¿- nome usado oficialmente ¿ em uma propriedade eclesiástica.

Aconteceu em 1979. O então presidente americano, Jimmy Carter, dera uma guinada nas relações com a América Latina, para conter as ditaduras da região. O governo dos EUA impôs à Argentina uma visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entidade autônoma da Organização dos Estados Americanos. Mas os inspetores da comissão não encontraram um único prisioneiro na visita à Escola Mecânica da Armada (ESMA), o mais conhecido centro de tortura ¿- hoje transformado em museu dedicado à memória dos 30 mil desaparecidos durante a ditadura.

Com a ajuda da cúpula católica, a Marinha escondera meia centena de presos políticos em uma ilha a duas horas de barco da capital, pelo Rio Tigre. Era uma propriedade da Igreja, usada nos fins de semana por seus líderes, principalmente o cardeal-arcebispo de Buenos Aires. Os portenhos se referem a essa ilha fluvial pelo nome de ¿El Silencio¿.

Capelães foram liberados para participar de interrogatórios

Outro aspecto emblemático das relações com o regime militar é a atuação da maioria dos sacerdotes vinculados às tropas. Prevê-se que, ao menos em parte, venha ser detalhada durante o julgamento do padre Von Wernich, a partir de relatos das vítimas e de documentos apresentados pelo governo.

Sabe-se, por exemplo, que o cardeal Raúl Primatesta, morto há um ano, colaborou ativamente com o general Luciano Benjamín Menéndez, o feroz comandante militar de Córdoba e, mais tarde, líder da rendição às tropas inglesas na Guerra das Malvinas.

Primatesta liberou os capelães militares subordinados para participação em interrogatórios nos quartéis. São muitos os relatos sobre a atuação desses padres: diziam às vítimas que Primatesta negociara com Menéndez um prazo máximo de 48 horas de tortura para cada preso, e quanto mais rápido falassem, menor seria o sofrimento. (José Casado)