Título: Sacerdote no banco dos réus
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 01/07/2007, O Mundo, p. 33

Argentina começa a julgar padre acusado de colaborar com torturadores na ditadura.

José Casado

Encapuzado, deitado na cama metálica de campanha sem colchão, o estudante sentiu a água fria correndo sobre seu corpo nu, de 20 anos de idade. O pavor se misturou à dor lancinante na língua, no peito e na genitália devastados pelos choques elétricos. O volume do rádio asfixiou os gritos ¿ os sinos e as salvas de canhão da ¿Abertura 1812¿, escrita por Tchaikovsky para comemorar a retirada de Napoleão de Moscou, embalaram a sessão de tortura.

Mais tarde, um desconhecido entrou na cela do ¿Centro Clandestino de Detenção Arana¿, nos arredores de La Plata (Argentina), registram os autos do processo. Vestia batina negra e perguntava em tom afável:

¿ Como se chama?

¿ Luis... Luis Velasco.

¿ Eu sou sacerdote, minha paróquia é na cidade de Nueve de Julio. Além disso, sou capelão policial...

¿ E como você se chama?

¿ Christian... Von Wernich.

O padre voltou várias vezes, sempre benevolente e inquiridor. Desejava um penitente:

¿ Te torturam... mas você consegue sentir algo que não seja ódio? ¿ provocou em uma conversa.

¿ E como se sente participando da tortura? ¿ devolveu o preso.

¿ Nada... Nada.

¿ Eu te odeio e a todos que estão contigo ¿ exaltou-se Velasco.

¿ É que todos vocês têm que pagar por seus atos contra a pátria. Vocês provocaram muitos danos ao país com as bombas, os atentados...

¿ E temos que pagar sendo torturados? ¿ retrucou o preso ferido.

¿ Sim. A dor é uma forma de redimir o mal. Você tem que abraçar sua cruz, assim como Jesus, por outros motivos, aceitou seu castigo. Porque o mal se cura com o castigo...

Três décadas depois, Christian Federico Von Wernich, 69 anos, ex-capelão da Polícia de Buenos Aires (1977 a 1978), vai se sentar no banco dos réus ¿ a partir da próxima quinta-feira, no tribunal federal de La Plata.

Pela primeira vez na história argentina, um sacerdote católico será julgado sob a acusação de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar (1976 a 1983): cumplicidade em sete homicídios, mais seqüestro, prisão e tortura de 41 pessoas.

Mais duas dezenas de envolvidos

Na acusação, o governo Néstor Kirchner se uniu a organizações não-governamentais e a famílias de desaparecidos. A promotoria listou uma centena de testemunhas ¿ muitas delas sobreviventes como Velasco, agora com 51 anos de idade. A defesa alega inocência: o capelão teria sido apenas um confessor de torturados e torturadores.

Há pelo menos outras duas dezenas de sacerdotes católicos envolvidos em processos semelhantes. Porém, o do padre Von Wernich tem o caráter simbólico de um período ditatorial em que fundamentalistas do nacional-catolicismo dominaram a hierarquia da Igreja Católica na Argentina.

¿ É sem dúvida o caso mais emblemático desse alinhamento com os militares. Consideravam a Igreja e as Forças Armadas como os pilares da nação e diziam agir em defesa da sociedade ocidental e cristã. A dissidência foi esmagada ¿ comenta o pesquisador Hernán Brienza.

Autor de um bom livro (¿Maldito tú eres¿, Editorial Marea, 2003) sobre Von Wernich, baseado nos depoimentos das vítimas em audiências preliminares, Brienza chegou a planejar um documentário sobre a influência da direita católica nas ditaduras da América do Sul. Desistiu ao constatar que no Brasil e no Chile o comportamento foi diferente:

¿ Só na Argentina houve, claramente, plena cumplicidade da hierarquia católica com a ditadura.

Essa ¿aliança sagrada¿ entre bispos e generais transformou o país em um laboratório dos grupos de ultra-direita. O Ciudad Católica, por exemplo, levou aos quartéis justificativas teológicas para o uso da tortura como arma de combate, aplicadas pela matriz francesa, Cité Catholique, na guerra colonial da Argélia dos anos 50.

Quando o general Jorge Videla tomou o poder ¿em nome dos Santos Evangelhos¿ ¿ como anunciou em março de 1976 ¿ boa parte dos capelães militares repetia homilias como a do monsenhor Vittorio Bonamín:

¿ Quando há efusão de sangue, há redenção. Deus vai redimir a Argentina por suas Forças Armadas ¿ consta do ¿Processo do Genocídio¿, da Comissão de Direitos Humanos.

Na catequese, a cúpula episcopal induziu farta produção editorial. Promoveu reedições de clássicos do fascismo-teocrático, como os de Jean Ousset, do Cité Catholique ¿ prefaciadas pelo cardeal Antonio Caggiano ¿, e teorias anti-semitas do padre jesuíta Julio Meinvielle, que em 1940 escreveu: ¿Paradoxalmente, o hitlerismo é a antecâmara do cristianismo. Há que destruir a estrutura anticristã. E esse é exatamente o grande serviço que o Eixo está prestando à Igreja Católica.¿ Generais como Luciano Benjamín Menéndez passaram a comandar solenidades de incineração de livros ¿contrários ao nosso modo de ser cristão¿.

A Junta Militar composta pelo general Jorge Videla, o almirante Emilio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti decretou a pena de morte (lei 21.358), por razões políticas ou simples decisão do Executivo. Era uma declaração de guerra interna, acompanhada de ordens secretas (como a de número 405/76, há pouco apresentada em juízo) para ¿destruição das organizações subversivas através da eliminação física de seus membros¿.

O general e governador de Buenos Aires, Ibérico Saint-Jean, resumiu:

¿ Primeiro mataremos os subversivos, depois seus colaboradores, em seguida seus simpatizantes e, por fim, os que permaneçam indiferentes.

Videla, na seqüência, sugeriu uma dimensão religiosa à matança:

¿ Um terrorista não é apenas alguém com pistola ou bomba, mas que propaga idéias contrárias à civilização ocidental e cristã.

Nas ruas, militantes do grupo católico ¿Restauración¿ divulgavam seu novo hino: ¿Com a cruz transformada em espada/ restauraremos a fé da Nação...¿