Título: A versão e o fato
Autor: Fogaça, Azuete
Fonte: O Globo, 06/07/2007, Opinião, p. 7

Perfeita a legenda da charge de O GLOBO (2/7): "O que importa não é o fato e, sim, a versão". Adotando as palavras do nosso primeiro mandatário, pode-se dizer que nunca antes neste país a verdade foi tão escancarada e, ao mesmo tempo, tão negada, mesmo que à custa da subestimação da inteligência de toda a sociedade, ou de grande parte dela.

Bois voadores, notas fiscais frias, conversas gravadas nas quais se discute a divisão dos ganhos ilícitos - nada disso vale. O que vale são os discursos hipócritas, as lágrimas de crocodilo e a apropriação distorcida dos direitos básicos de cidadania, já que se invoca o princípio de que todos são inocentes até prova em contrário, mesmo quando essas provas são abundantes e incontestáveis.

Entretanto, essa mesma legenda se aplica ao Brasil não apenas nos tristes episódios de acobertamento das falcatruas de nossos ilustres parlamentares, mas, também, na forma como as elites brasileiras, diretamente ou através de seus bravos representantes, defendem a continuidade de seus privilégios.

As notícias recentes vindas da Suprema Corte norte-americana se transformaram em nova base de argumentação daqueles que negam a existência de racismo no Brasil e concebem a universidade não como uma instituição de formação de elites, mas como uma instituição das elites. São pessoas que, numa postura bastante semelhante à da tropa de choque que ora atua no Conselho de Ética do Senado, usam qualquer artifício, além de malabarismos intelectuais, para fazer valer a versão, e não o fato.

Este tipo de procedimento não é uma novidade: no período colonial, os defensores da escravidão se apoiavam na "Bula Papal", de 1454, que justificava o aprisionamento e a escravização dos africanos, posto que não se tratava de seres humanos.

Os negros não possuíam alma e viviam uma vida pagã; daí, a escravidão e os maus-tratos a ela inerentes seriam o caminho da salvação daqueles seres inferiores e, quando houvesse a conversão ao Cristianismo, uma oportunidade de se igualarem aos homens de bem - os brancos, naturalmente -- e, quem sabe, pelo sofrimento, chegar ao reino dos céus. E, assim, a despeito das inúmeras demonstrações da humanidade dos negros - as lágrimas, as dores, as manifestações culturais, as manifestações afetivas -, os senhores puderam dormir tranqüilos, em paz com suas consciências, durante pelo menos dois séculos.

No século XIX, quando essas evidências se tornaram impossíveis de serem desprezadas, novas manifestações vieram em defesa dos privilégios dos senhores, dessa vez apoiadas em estudos "científicos", através dos quais se "provava" que os negros possuíam, em seus corpos, fluidos maléficos, que envenenavam os brancos que com eles tivessem contato.

Esses fluidos seriam os responsáveis, entre outras coisas, pelas doenças venéreas, por uma natural tendência à violência, à preguiça, e outras características negativas. Mais uma vez, pouco importava a realidade, na qual os escravos eram os únicos trabalhadores, e os senhores e suas famílias viviam no ócio. Também, pouco importava saber que a sífilis já grassava na Europa e fora trazida para o Brasil exatamente pelos colonizadores, já que o objetivo era legitimar a "superioridade" branca.

Agora, na nossa neocolônia, a Suprema Corte norte-americana se transforma no baluarte dos herdeiros, biológicos ou ideológicos, dos senhores de engenho e, mais uma vez, não importa se os dados e as informações disponíveis mostram um outro cenário: o que vale é a afirmação de que os direitos comuns não podem se converter em privilégios distribuídos segundo critérios raciais, mesmo quando se sabe que a distribuição das oportunidades é feita pelos brancos, e segundo esses critérios. Concordo em gênero, número e grau com esse princípio.

É exatamente ele que sustenta a mobilização dos negros em torno das ações afirmativas, mas é usado pelos defensores do status quo para transformar reivindicações de igualdade em reivindicações de privilégios. No afã de adotar as palavras dos juízes norte-americanos com a mesma fidelidade que se adotou a "Bula Papal" e os tratados "científicos", nem observaram que a ação julgada na Suprema Corte norte-americana diz respeito ao acesso dos negros norte-americanos ao Ensino Básico, coisa que até no Brasil, com todas os problemas da nossa frágil democracia, em que pese a má qualidade do ensino oferecido nas redes públicas, já é aceita como um direito de todos e um dever do Estado.

Assim, a igualdade racial e os direitos de cidadania a que se referem os pareceres dos juízes da Suprema Corte norte-americana não passam também de negação da realidade. Ou será que já se esqueceram de episódios como os de Los Angeles ou, mais recentemente, da tragédia do furacão Katrina, quando os negros de New Orleans foram abandonados à própria sorte numa ação intencional e discriminatória dos wasp do governo norte-americano?

No Brasil, assim como nos Estados Unidos, não foram os negros que desrespeitaram os princípios igualitários que, numa análise honesta da questão do racismo, deveriam servir exatamente de ponto de apoio para a implantação de políticas de discriminação positiva, que contribuam para a reversão das nefastas conseqüências, para a população negra, do tratamento desigual que sempre receberam. Mas, assim como nossos políticos representam o papel de homens probos e nos tentam fazer de idiotas, a argumentação baseada na negação do racismo tenta apresentar como democratas aqueles que sempre usufruíram dos privilégios, e transformar a nós, negros, em racistas aproveitadores.

Nenhuma surpresa: essa é a versão, que, um dia, com certeza, será superada pelos fatos. Um povo que sofre e luta há quatro séculos pode esperar um pouco mais, até que as máscaras caiam e as faces verdadeiras, racistas, apareçam.

AZUETE FOGAÇA é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.